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Por que a América Latina é tão violenta? Os fatores que explicam a criminalidade violenta na região

por Rafael Erthal


1)                 Introdução


A América Latina é uma região notória por seus índices de criminalidade, maiores do que qualquer outra região do mundo. Os números superam inclusive os africanos, continente contaminado por guerras civis infindáveis nas últimas décadas.

Apesar de estudos indicarem que a criminalidade violenta está correlacionada com a natureza autoritária das instituições do país, o número de homicídios por 100 mil habitantes, que serve de proxy para a criminalidade violenta, é um dos mais altos do mundo na América Latina, embora a maioria dos países latino-americanos sejam, ao menos formalmente, democracias.

Vários estudos têm buscado explicar os fatores por trás da criminalidade violenta nos países latino-americanos. Esse breve artigo traz alguns achados a respeito, em especial a explicação multifatorial para a questão.


As cidades mais violentas do mundo estão na América Latina. Fonte: https://www.opendemocracy.net/pt/america-latina-cidades-mais-violentas-mundo/
As cidades mais violentas do mundo estão na América Latina. Fonte: https://www.opendemocracy.net/pt/america-latina-cidades-mais-violentas-mundo/

 

2)                 Estudos analisados


Foram selecionados estudos a respeito da criminalidade na América Latina, utilizando-se termos de pesquisa como “why latin america is so violent?” e “why the crime rate in latin america is so high?”. Preferiu-se estudos com maior número de citações, que normalmente aparecem nos primeiros resultados de pesquisa. Vale ressaltar que os anos dos estudos variaram, com datas de publicação entre 2010 e 2023.

Os artigos selecionados foram os seguintes:

a)    CHAINEY, S. P. et al. An Institutional Perspective to Understand Latin America’s High Levels of Homicide. The British Journal of Criminology, v. 63, n. 5, p. 1199–1218, 2023;

b)    NADANOVSKY, P.; CUNHA-CRUZ, J. The relative contribution of income inequality and imprisonment to the variation in homicide rates among Developed (OECD), South and Central American countries. Social Science & Medicine, v. 69, p. 1343-1350, 2009;

c)     RIVERA, M. The sources of social violence in Latin America: An empirical analysis of homicide rates, 1980–2010. Journal of Peace Research, v. 53, n. 1, p. 84–99, 2016; e

d)    SOARES, R. R.; NARITOMI, J. Understanding High Crime Rates in Latin America: The Role of Social and Policy Factors. In: DI TELLA, R.; EDWARDS, S.; SCHARGRODSKY, E. (Eds.). The Economics of Crime: Lessons for and from Latin America. Chicago: University of Chicago Press, 2010. p. 19-55.

 

Como se observa pelos títulos, os artigos têm diferentes enfoques a respeito do tema, variando entre aspectos socioeconômicos e institucionais.

Por óbvio, milhares de trabalhos existem a respeito do tema, sendo que há diversas outras formas de enxergar o problema em questão. Entretanto, o objetivo deste artigo é analisar alguns pontos – explorados pelos pesquisadores nas publicações arroladas –, e que podem contribuir para a compreensão da criminalidade na América Latina.



3)                 Fatores analisados pelos artigos


a)    Efetividade institucional e corrupção – a abordagem “institucional” de Chainey et al.


Os autores argumentam que a efetividade de instituições governamentais e o controle da corrupção são fatores-chave que explicam os altos índices de homicídio na América Latina. Segundo o estudo, fatores “estruturais” são menos significativos, e não possuem correlação estatisticamente relevante para a criminalidade latino-americana. O estudo analisou 54 países da América Latina, com dados de 2005 a 2017.

Para medir de forma quantitativa essa variável, que é multifatorial, o autor utiliza alguns parâmetros:

  • efetividade do governo (GE): utiliza dados do Indicador de Governança Mundial, (WGI) do Banco Mundial. Esse parâmetro considera “percepções sobre a qualidade dos serviços públicos, a qualidade do serviço público e o grau de sua independência em relação a pressões políticas, a qualidade da formulação e implementação de políticas e a credibilidade do compromisso do governo com tais políticas”;

  • controle de corrupção: medida utilizando dados do Índice de Percepção da Corrupção (CPI) da Transparência Internacional (TI). A escala vai de 0 a 100, em que 0 é altamente corrupto e 100 é um país sem corrupção;

  • independência do Judiciário: medida que utiliza a denominada Independência Judicial Latente, combinando oito fatores de independência judicial em uma única variável, que vai de 0 (sem independência) e 1 (total independência);

  • Índice de Estado de Direito (“Rule of Law Index”): variável que vai de -2,5 (instituições muito fracas) até 2,5 (instituições fortes), considerando fatores como respeito aos contratos; polícia; cortes judiciais e a probabilidade de crime e de violência na sociedade; e

  • Índice de Impunidade: grandeza que é calculada pela razão entre homicídios cometidos na década anterior e o número de pessoas na prisão. Quanto maior é a razão, maior é a probabilidade de que indivíduos sejam efetivamente punidos por um crime (nota-se que neste caso os homicídios foram considerados como proxy da criminalidade em geral).


Chainey argumenta que a eficiência governamental (GE) e a corrupção – elementos ligados ao funcionamento institucional de uma nação – são variáveis estatisticamente correlacionadas ao nível de homicídios na América Latina.

Apesar de defender uma abordagem institucional para explicar o fenômeno criminal na região, o autor reconhece a importâncias de fatores socioeconômicos (pobreza, desemprego, desigualdade e níveis educacionais ruins). Entretanto, esses fatores, isoladamente considerados, não explicam integralmente o motivo pelo qual a América Latina apresenta níveis tão elevados de violência criminosa. Nota, no entanto, que, no seu espaço amostral analisado, a desigualdade e os níveis educacionais tiveram correlação significativa com número de homicídios, afastando-se da “abordagem institucional” exclusiva, por assim dizer.

Sem citar expressamente Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson[1] no estudo, Chainey tem ponto de vista que vai ao encontro desses autores – inclusive citando outros que trabalham com o tema –, que defendem a importância das instituições para o desenvolvimento socioeconômico dos países. Segundo Acemoglu e Robinson[2], instituições inclusivas são aquelas que permitem o crescimento econômico da população e o incremento de políticas públicas que aumentam sua qualidade de vida. Por outro lado, instituições extrativas limitam o crescimento econômico, ao despojar parcela com menor poder político de melhores índices de desenvolvimento humano, por diferentes mecanismos (entre eles, o rentismo e a corrupção).


b)    Fatores socioeconômicos e impunidade


Nadanovsky e Cunha-Cruz relatam em seu artigo a importância da desigualdade econômica como motor para o crescimento do número de homicídios, correlacionando essa variável com a ocorrência de homicídios na América Latina.

Nesse sentido, os autores defendem que menores níveis de desigualdade econômica (representados por Índices de Gini[3] menores) levam a maior adesão social e confiança interpessoal – o que culmina em menores índices de criminalidade e de violência entre as pessoas. Quando a renda é mais bem distribuída, existe maior senso de comunidade e menor incentivo para o cometimento de delitos.

A desigualdade econômica também pode ser motor para o cometimento de crimes por outro modo: quando há maior desigualdade, os menos favorecidos tendem a cometer crimes para que seu patrimônio seja nivelado ao de pessoas mais abastadas, mas essa explicação ficaria restrita a crimes patrimoniais, o que não foi analisado pelos autores.

De todo modo, Nadanovksy e Cunha-Cruz apresentam dados com relevância estatística significativa, correlacionando positivamente o Índice de Gini de determinado país e seus níveis de homicídio. Segundo o estudo, para cada aumento de um ponto no Índice de Gini, haveria incremento de 44% na taxa de homicídios. Na mesma linha, revelando maior sensibilidade da parcela jovem e masculina da população à desigualdade econômica, o aumento de um ponto no índice representa incremento de 86% na taxa de homicídios para essa fração populacional.

Importante mencionar que há outros estudos afirmando que não existe correlação entre desigualdade econômica e homicídios quando é feito controle por meio de nível de renda (pobreza). Mas o estudo em tela afirma que a desigualdade de renda se mantém como importante preditor da quantidade de homicídios em um país, mesmo quando se controla por fatores como pobreza, PIB per capita, educação e outras variáveis socioeconômicas.

Os autores também demonstram a relevância da impunidade, ao correlacionar positivamente o “Índice de Impunidade” com o número de homicídios. O Índice de Impunidade foi calculado como sendo a razão entre a quantidade de homicídios nos últimos dez anos e a quantidade de pessoas na prisão.

Esse índice considera, portanto, que quanto maior o número de presos, menor será o valor do índice de impunidade. Como um dos crimes de maior relevância, maior número proporcional de registros frente à real ocorrência (ou seja, menor cifra negra[4]) e com penas mais elevadas, o homicídio, como crime “padrão”, é um excelente proxy para a quantidade de pessoas presas[5]: quanto maior o número de homicídios, maior a quantidade de encarcerados – não necessariamente, mas também, por esse crime.

Em conclusão, Nadanovsky e Cunha-Cruz apontam a impunidade como preditores dos índices de criminalidade, especialmente de crimes violentos. Adicionalmente, assinalam que a coesão social (baixa desigualdade econômica, baixa pobreza, alto nível educacional e renda média elevada) promovem a punição de criminosos por meios diversos.

 

c)     Perfil demográfico da população e conflitos armados – Rivera, Soares e Noritomi


Os estudos de Rivera e Soares e Noritomi examinaram níveis de violência na América Latina entre os anos de 1980 e 2010, abordando diversos elementos das ciências sociais.

Para os autores, são determinantes para os níveis de violência na América Latina:

  • proporção de jovens, principalmente de homens, na população: quanto maior a fração de jovens (15 a 24 anos) na população, maiores são os índices de violência. Homens jovens estão mais propensos à atividade criminal por diversos fatores, entre eles biológicos. A alta taxa de testosterona, que eleva a agressividade, explica parcialmente esse fenômeno. Ademais, maior proporção de jovens na população pode causar desemprego, considerando que essa parcela ainda não tem qualificação necessária para entrar ou permanecer no mercado de trabalho, ou ocupam posições de baixa relevância. Também é digno de nota o fato de que, em todos os países do mundo, homens jovens são desproporcionalmente responsáveis pela criminalidade violenta. Logo, nações cujas pirâmides etárias tenham maior proporção de pessoas nessa fração tendem a ser mais violentas pelo só fato de assim serem;

  • guerras civis também parecem contribuir para o quadro de violência sistêmico na região. O estudo sugere que países que passaram por guerras civis em época recente tendem a apresentar taxas mais elevadas de criminalidade. A explicação é a manutenção da cultura violenta;

  • de modo interessante, a proporção de mulheres no mercado de trabalho está relacionada à violência, da seguinte forma: quanto maior a participação de mulheres nas atividades econômicas, menor é o tempo disponível para tarefas domésticas, inclusive a de cuidar dos filhos, deixando-os mais suscetíveis a participar de atitudes criminosas, ainda que por influência alheia. De fato, a desestruturação familiar na sociedade é um dos principais fatores para o aumento da criminalidade, fato que foi apontada por Levitt[6] (2001) em seu estudo que correlacionou o aborto com a redução da criminalidade. Não se quer dizer, em absoluto, que a entrada da mulher no mercado de trabalho é algo indesejável. Não há qualquer juízo de valor nesse sentido. Esse fato é uma causa apenas no sentido de que acaba gerando condições favoráveis para que jovens se envolvam com atividades criminosas;

  • quanto à localização do país como rota para o narcotráfico, Rivera sugere que esse fator não é suficiente, por si só, para aumentar a criminalidade. De maior relevo é o fato de o país estar envolvido com a lavagem de dinheiro vinculada ao tráfico de drogas. Ou seja, se a droga passa “incólume” pelo país, apenas atravessando sua malha de transporte, a tendência é que os níveis de criminalidade não sejam tão elevados quanto os de um país em que a droga, efetivamente, seja inserida no mercado e o proveito econômico seja objeto do crime de lavagem de capitais.

 

4)                 Discussão e conclusão


Resumidamente, de acordo com os artigos analisados, podemos concluir que a violência latino-americana pode ser explicada, ao menos em parte, pelos seguintes fatores:

  • desigualdade socioeconômica;

  • instituições fracas ou corruptas;

  • impunidade;

  • perfil demográfico; e

  • ocorrência de guerras civis em tempo recente.


Chainey et al. enfatizam o papel crítico da eficácia do governo (GE) e do controle da corrupção na redução das taxas de homicídio. Para resolver essas questões, os governos devem priorizar reformas institucionais que aumentem a transparência, a responsabilidade e a eficiência. Isso pode ser alcançado por meio de medidas como o fortalecimento das agências anticorrupção, a promoção de boas práticas de governança e o investimento na formação e profissionalização de funcionários públicos. Além disso, promover a colaboração entre agências governamentais, organizações da sociedade civil e o setor privado pode criar uma abordagem mais robusta e coordenada para combater a corrupção e melhorar a GE.

Nadanovsky e Cunha-Cruz destacam a importância da desigualdade de renda e da impunidade como principais impulsionadores das taxas de homicídio6. Para combater a desigualdade de renda, os governos devem implementar políticas que promovam o crescimento econômico inclusivo, reduzam as disparidades na distribuição de riqueza e expandam o acesso à educação, saúde e oportunidades de emprego. O fortalecimento das redes de segurança social, o investimento em programas de desenvolvimento da primeira infância e a promoção de práticas trabalhistas justas também podem ajudar a reduzir a desigualdade de renda e seus males sociais associados. Simultaneamente, combater a impunidade requer o fortalecimento do sistema judicial, o aumento da eficiência das agências de aplicação da lei e a garantia de que os criminosos sejam responsabilizados por suas ações.

A análise de Rivera ressalta a influência de fatores demográficos, capacidade estatal e restrições sociais na violência social. Para lidar com esses fatores, os governos devem investir em programas que promovam o desenvolvimento da juventude, reduzam o desemprego e ofereçam oportunidades de educação, formação profissional e engajamento cívico. Além disso, o fortalecimento do sistema judicial, a melhoria da capacidade de aplicação da lei pode ajudar a reduzir a violência e construir confiança entre os cidadãos e as instituições estatais.

O estudo de Soares e Naritomi reforça a ideia de que o crime na América Latina não é um fenômeno excepcional, mas sim uma consequência das condições socioeconômicas e das escolhas políticas. A análise sugere que estratégias eficazes para a redução do crime envolvem uma combinação de medidas repressivas, como o aumento da presença policial e das taxas de encarceramento, e programas de apoio social que abordam as causas profundas do crime, como a pobreza, a desigualdade e a falta de oportunidades no mercado de trabalho.

Como observado, diferentes fatores podem contribuir para explicar a natureza violenta das sociedades latino-americanas, que possuem as maiores taxas de criminalidade violenta entre os países do mundo. Os estudos a respeito do tema servem para diagnosticar corretamente o problema, de modo a propor soluções que considerem todos os fatores apontados. A abordagem exclusivista  – seja pelo incremento do punitivismo, seja pela insistência em apontar fatores econômicos – não tem gerado bons resultados nos países da região.

O Nisp buscará sempre a compreensão integral do tema, para propor soluções viáveis, concretas e respaldadas em estudos científicos robustos, primando não somente pela eficácia das proposições, mas também pela economia de recursos públicos.


Mais um local de homicídio em cidade latinoamericana. Fonte: https://insightcrime.org/news/analysis/why-is-there-so-much-crime-in-latin-america/
Mais um local de homicídio em cidade latinoamericana. Fonte: https://insightcrime.org/news/analysis/why-is-there-so-much-crime-in-latin-america/

[1] Os três foram vencedores do Prêmio Nobel de Economia em 2024, com os trabalhos sobre a relação entre a natureza das instituições estatais e desenvolvimento econômico.

[2] ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James A. Why nations fail: the origins of power, prosperity, and poverty. New York: Crown Business, 2012.

[3] O Índice de Gini é uma grandeza que vai de 0 a 100, e analisa a desigualdade socioeconômica em determinado espaço amostral. Quanto maior a desigualdade econômica, maior é o Índice de Gini. É bastante utilizado para medir a desigualdade econômica em países.

[4] A cifra negra é a quantidade de crimes que permanecem “ocultos”, às margens da persecução penal. São crimes que sequer chegam a ser registrados oficialmente. O homicídio, em regra, é um dos crimes com menor cifra negra, justamente porque seu objeto – a pessoa morta – é de extrema relevância para a investigação policial e apresenta maior dificuldade para ser ocultado sem que outras pessoas notem sua falta (familiares, amigos etc.).

[5] Isso porque a pena para o crime de homicídio é elevada quando comparada à dos demais crimes, mesmo considerando ordenamentos jurídicos distintos. A propensão de que uma pessoa pratique homicídio e seja ou permaneça presa, portanto, é maior.

[6] DONOHUE, John J.; LEVITT, Steven D. The impact of legalized abortion on crime. Quarterly Journal of Economics, v. 116, n. 2, p. 379-420, 2001. Disponível em: https://pricetheory.uchicago.edu/levitt/Papers/DonohueLevittTheImpactOfLegalized2001.pdf. Acesso em 6 de fevereiro de 2025.


Rafael Erthal é coordenador do Instituto NISP e consultor-legislativo do Senado Federal na área de direito penal, processual penal, penitenciário e segurança pública. Foi perito criminal na Polícia Civil do Distrito Federal por 14 anos, tendo atuado nas Seções de Crimes contra a Pessoa e de Delitos de Trânsito.

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