Como mentir com estatística prisional? O país do desencarceramento em massa
- Filipe Azevedo Rodrigues
- 18 de nov.
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por Filipe Azevedo Rodrigues
Na quinta-feira (30/11), tive o privilégio de moderar um debate riquíssimo sobre Segurança Pública e Análise Econômica do Direito Penal no XVIII Congresso da ABDE (IDP – Brasília), cuja relevância se tornou ainda maior após a recente incursão das forças de segurança pública do Rio de Janeiro no Complexo do Alemão, confrontando o domínio territorial do Comando Vermelho.
Sobre as peculiaridades desse cenário bastante preocupante, os palestrantes – Dra. Ana Claudia Pinho, Dr. Daniel Cerqueira e Dr. Pery Shikida – expuseram diferentes e interessantes abordagens, embora ainda pouco se saiba do desafio enfrentado pela população local e pelos agentes de segurança pública.
Do ponto de vista jurídico, uma das preocupações discutidas consistiu em como categorizar dinâmicas criminais que se utilizam de métodos de terror, imposição da violência a grandes massas populacionais e domínio territorial, tudo garantido por forte armamento e cada vez mais sofisticadas estratégias de guerrilha.
As normas penais e de persecução penal em geral estão calibradas adequadamente para responder a esse perfil de macrocriminalidade cada vez mais assemelhada a ações de grupos terroristas? A respeito disso, publiquei novamente texto de 2023, onde traço todo o histórico de tratados internacionais e legislação interna que demonstram não ser uma inovação conceber soluções comuns para os fenômenos do crime organizado e do terrorismo (Rodrigues, 2025).
No entanto, aqui, pretendo abordar outro objeto conexo sob a ótica da Análise Econômica do Direito, qual seja: a correlação entre sistema penitenciário e organizações criminosas no Brasil, bem como os conceitos de superlotação carcerária e encarceramento em massa.
Segundo boa parcela dos teóricos da criminologia, o sistema punitivo alicerçado na pena de prisão, em vez de representar uma ameaça crível para dissuadir a decisão de delinquir, converte-se numa espécie de RH das organizações criminosas, por meio do qual recrutam e fidelizam novos soldados para manter um contingente suficiente a garantir sua expansão.
Essa perspectiva, em tese, desmontaria a premissa de Gary Becker (1968) de que o produto da probabilidade de punição e da severidade das penas é inversamente proporcional à quantidade de crimes, porquanto, com mais aprisionamento (incremento de penas severas), mais prospera o crime organizado, tal qual sustentam garantistas e abolicionistas.
Para embasar essa hipótese – normalmente divulgada como dogma –, seus defensores afirmam que o aumento e sofisticação do crime organizado acompanha o aumento da população carcerária no Brasil, algo que, numa análise apressada, parece fazer sentido.
O discurso apresenta superpopulação carcerária e encarceramento em massa como duas faces de uma mesma moeda, inseparáveis portanto, e, em razão do segundo fenômeno, concluem que o país sempre adotou uma política criminal de crescente encarceramento como solução para todos os perfis de criminalidade.
Esse é o mote para buscar uma correlação entre criminalidade nas ruas e pena de prisão. No entanto, há um erro conceitual severo na base de todo esse discurso.
Superpopulação carcerária significa tão somente número de apenados superior ao número de vagas disponíveis em estabelecimentos penais. Se os estabelecimentos penais forem escassos, ainda que no país haja uma proporção baixa de presos por cada 100 mil habitantes, é inevitável a identificação de um quadro de superpopulação carcerária. Em outras palavras, esse conceito é objetivo e meramente quantitativo, não cabendo promover, sobre ele, relativizações morais e ideológicas – a propósito, a Lei de Execução Penal define 6m² como área mínima para cada preso em regime fechado, reforçando a objetividade do conceito.
Já o encarceramento em massa é um conceito por excelência qualitativo e fortemente sujeito a vieses na abordagem, ainda que se recorra a dados quantitativos para afirmá-lo. Isso ocorre porque a posição contra o aprisionamento é anterior à análise do quanto se prende, ao passo que a oposição de que se deve prender mais e por muito tempo também costuma ser uma ideia anterior à análise dos dados e da própria política criminal.
Não obstante, um recente estudo que cruzou indicadores de encarceramento e criminalidade, escrito pela pesquisadora Alícia Regianne Bezerra de Lima (2025, p. 324) – Grupo de Pesquisa em Direito e Economia do Crime (DECrim), UFRN – jogou luz no conceito, utilizando um critério menos arbitrário de comparação entre distintos países e suas políticas penitenciárias.
“O presente artigo analisa a efetividade do encarceramento no Brasil a partir de uma abordagem juseconômica, questionando a visão amplamente difundida de que o país enfrenta um cenário de superencarceramento. A pesquisa examina dados estatísticos e contextuais sobre criminalidade e taxas de prisão, evidenciando a discrepância entre o discurso de punição severa e a realidade de baixos índices de resolução de crimes. Com base em uma metodologia qualitativa e documental, o estudo reflete sobre os impactos de um sistema penal que, além de não conter a violência, sustenta uma percepção social de impunidade. A análise sugere que o Brasil prende menos do que seria necessário para reduzir efetivamente a criminalidade” (Lima e Rodrigues, 2025, p. 324).
No estudo, a autora identificou que “há uma significativa divergência entre os números apresentados por diferentes órgãos sobre a população carcerária no Brasil” (Lima e Rodrigues, 2025, p. 334), a exemplo do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 e do Relatório Semestral do Senappen também de 2023. Os números de pessoas privadas de liberdade apresentados são, respectivamente, 846.021 e 642.491. Uma diferença superior a 200 mil pessoas (32%).
Tal diferença se deve ao fato de que muitas entidades com espaço no debate público e institucional omitem de seus estudos, com aparente intenção de inflar artificialmente os dados, que mais de 200 mil apenados são beneficiários do regime semiaberto harmonizado, criado pelo Poder Judiciário brasileiro há alguns anos como solução temporária, perenizada diante de reiterada negligência do poder público na gestão prisional.
O regime semiaberto harmonizado se soma a mais de uma dezena de outros institutos igualmente despenalizadores existentes na legislação penal e processual penal – transação penal, sursis penal e processual, ANPP, colaboração premiada, substituição por penas restritivas de direitos e multa, arrependimento posterior e tantos outros. O arranjo de medidas despenalizadoras reduz a prisão a condenações por crimes graves e em casos de concurso delitivo para criminosos habituais, o que denota que a política criminal e penitenciária brasileira é desencarceradora, ao contrário dos alarmados discursos de certos especialistas apontando uma política de encarceramento em massa.
Então, o que explicaria a superpopulação carcerária sem a coexistência de uma política criminal de encarceramento em massa? Um estoque de crimes consistentemente elevado há décadas quando comparado ao de outros países, bem como a cifra negra de subnotificações criminais e delitos não investigados ou solucionados.
“Países como Suécia, Holanda, Nova Zelândia e Coreia do Sul têm cerca de 98 presos por 100.000 habitantes para 1 homicídio para o mesmo grupo de 100.000 habitantes. Embora o Brasil, em 2023, tenha chegado à marca de 392 presos para cada 100.000 habitantes (indicador quase 4 vezes maior do que os demais países citados), possui 27,38 homicídios para cada 100.000 pessoas, isto é, índice 27 vezes maior do que os exemplos em contraste” (Lima e Rodrigues, 2025, p. 336).
Se tomados apenas os homicídios, o Brasil possui número mais de 20 vezes superior à média dos países da OCDE, ao passo que a taxa de encarceramento geral é apenas 4 vezes maior. E, considerando que a maior parcela dos delinquentes encarcerados assim está em razão de outros delitos, a dimensão da criminalidade é incrivelmente superior aos demais países quanto à população prisional. Curiosamente, na América do Sul, o encarceramento brasileiro por cada grupo de 100 mil habitantes é menor do que o vizinho Uruguai embora o número brasileiro de homicídios seja 3 vezes maior.
Esses elementos reunidos permitem chegar à conclusão de que o efeito dissuasório da pena de prisão nunca foi efetivamente testado no Brasil, seja porque os estabelecimentos penais são precários e escassos seja em razão de uma política criminal repleta de institutos despenalizadores confusos e redundantes, que distanciam a pena ameaçada na Lei daquela efetivamente cumprida. Isso afeta a variável Beckeriana de probabilidade de punição quando a pena de prisão cominada não é executada e, ao mesmo tempo, a variável severidade das penas, não sentida pelos apenados brasileiros conforme estudo do Prof. Pery Francisco Assis Shikida (2024).
Aliás, esse cruzamento de análise de dados públicos, revisão bibliográfica de institutos penais e empiria reforçam a hipótese levantada no modelo de Gary Becker (1968), porquanto, se tais variáveis tendem a zero, a quantidade de crimes dispara, tal qual aconteceu no Brasil desde a reforma penal de 1984.
A solução para um cenário de superpopulação carcerária sem encarceramento em massa é edificar novos estabelecimentos penais, conforme os ditames da Lei de Execução Penal, notadamente aqueles destinados aos regimes semiaberto e aberto. Neles, a escassez de vagas é mais acentuada, produzindo um factual “desencarceramento em massa”, substituindo-os por precários sistemas de monitoração eletrônica (Rodrigues, 2021).
Em suma, sem encarceramento em massa, e com índices alarmantes de criminalidade, o racional não é soltar, mas construir mais e melhores presídios.
Ademais, é muito importante pesquisar empiricamente a taxa de rotatividade de vagas em estabelecimentos penais, pois o universo hipotético de 500 presos em dada penitenciária no início do ano pode se sustentar, mas não significa que são os mesmos 500 indivíduos encarcerados no fim do ano. Esse dado tem o condão de produzir evidências confiáveis que o Brasil não prende muito, afinal há muitos criminosos impunes e em liberdade por décadas de incompetência estatal.
Filipe Azevedo Rodrigues é professor do Curso de Direito de Caicó e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN. Líder do Grupo de Pesquisa em Direito e Economia do Crime (DECrim) e colaborador do NISP. Email: rodrigues.cgern@gmail.com.
BECKER, Gary Stanley. Crime and punishment: an economic approach. Journal of political economy: Essays in the economics of crime and punishment, National Bureau of Economic Research, p. 169-217, 1968.
LIMA, Alícia Regianne Bezerra de; RODRIGUES, Fillipe Azevedo. O Brasil prende pouco e mal: uma abordagem juseconômica do crime e do encarceramento no Brasil. MARQUES, Andreo Aleksandro Nobre; CAVALCANTI, Rodrigo. Direito penal econômico contemporâneo: doutrina, prática e jurisprudência. Natal: Insigne Acadêmica, 2025.
RODRIGUES, Fillipe Azevedo. Análise econômica da execução penal: alocação ótima de recursos no regime semiaberto. JORGE, Marco Antônio; JUSTUS, Marcelo. Economia do Crime no Brasil. Curitiba: CRV, 2021.
RODRIGUES, Fillipe Azevedo. Análise econômica do direito penal propriamente dita. Revista de Análise Econômica do Direito. V. 6, Ano 3, São Paulo, jul./dez. 2023
RODRIGUES, Fillipe Azevedo. Terrorismo e crime organizado: PL 3283/2021. Caicó: Grupo de Pesquisa em Direito e Economia do Crime - @decrim.ufrn, 2025.
SHIKIDA, Pery Francisco Assis. Aspectos da economia do crime em unidades prisionais da região metropolitana de São Paulo: elementos teóricos e evidências empíricas. Informe Gepec, v. 28, n. 2, p 268-287, jul/dez 2024.
