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Por que o PL da terceirização no sistema penitenciário é andar para trás?

  • João Renato
  • 22 de jul.
  • 9 min de leitura

Por João Renato Borges Abreu

Mestre em Direito e Políticas Públicas, policial penal do DF e coordenador do NISP.


O Estado não pode terceirizar o combate ao crime organizado

Aprovado recentemente na Câmara dos Deputados, o substitutivo ao Projeto de Lei n. 2.694/2015 amplia a atuação da iniciativa privada dentro dos presídios brasileiros. A proposta autoriza empresas a desempenharem funções sensíveis como o monitoramento eletrônico e a movimentação interna dos presos — tarefas historicamente exercidas por servidores públicos concursados, hoje policiais penais, reconhecidos expressamente como agentes dos órgãos de segurança pública pela Emenda Constitucional n. 104/2019.

A justificativa se apoia na ideia de redução de custos, mas essa lógica é frágil diante da função estratégica que o sistema penitenciário exerce no enfrentamento ao crime organizado. Como aponta o Raio-X do Sistema Penitenciário do Distrito Federal (NISP, 2024), o controle estatal pleno do cárcere é indispensável para impedir a expansão das facções criminosas para além dos muros.

Não faz sentido dizer que gastamos demais com o sistema penitenciário. Dados da CNN Brasil (2024) mostram que o crime organizado movimentou R$ 350 bilhões entre 2020 e 2023, enquanto o orçamento anual do sistema prisional do DF — um dos mais estruturados do país — foi de cerca de R$ 500 milhões. Seriam necessários 700 anos desse investimento para alcançar o faturamento criminoso do triênio, expondo o abismo entre os recursos do Estado e o poder econômico das facções. Diante disso, estamos realmente gastando muito ou, na verdade, investindo menos do que o necessário para minar um mercado ilegal que drena riqueza, alimenta a violência e ameaça a ordem pública?

Esse diagnóstico é reforçado pelo estudo Aspectos da Economia do Crime (Shikida, 2024), que aponta que presos envolvidos em crimes econômicos têm renda mensal cerca de 13 vezes maior que trabalhadores formais. A lucratividade do crime, somada à retração institucional, torna o ambiente propício à expansão do poder paralelo.


Movimentação de presos: o ponto mais crítico

Entre os pontos mais alarmantes do projeto está a autorização para que empresas privadas apoiem a movimentação interna de presos. Embora à primeira vista pareça uma atividade meramente logística, trata-se de uma das etapas mais delicadas da rotina prisional. É nesses deslocamentos que ocorrem fugas, tentativas de rebelião e acesso a objetos ilícitos ou sensíveis, como ferramentas, celulares ou até mesmo armas.

Ignorar o risco dessa atribuição é grave. Como descrito no Raio-X do Sistema Penitenciário do DF, a movimentação interna é uma atividade operacional crítica que exige preparo técnico, controle disciplinar e experiência institucional. Essa responsabilidade precisa estar sob a tutela dos policiais penais, que são treinados, hierarquizados e sujeitos a rígidos mecanismos de controle. Substituí-los por operadores contratados terceirizados enfraquece a segurança e compromete a integridade do sistema.

Além disso, o fracionamento da responsabilidade pela segurança nas unidades prisionais fragiliza a cadeia de comando e dificulta a apuração de responsabilidades em casos de falhas operacionais ou condutas ilícitas. A atuação intermitente de funcionários terceirizados agrava ainda mais esse cenário: ao final do expediente, os agentes privados se retiram do ambiente prisional, enquanto a continuidade da segurança recai integralmente sobre os policiais penais. São eles que permanecem com a incumbência de zelar pelos internos deixados sob sua guarda por escoltas terceirizadas. Nessa lógica, qualquer falha cometida por um agente externo pode expor diretamente o policial penal ao risco — colocando-o, como se diz no vocabulário carcerário, “na ponta da faca”.


Monitoramento eletrônico como negócio: o que pode dar errado?

Outro aspecto preocupante é a possibilidade de terceirizar o monitoramento eletrônico de presos. Essa função, que controla à distância a liberdade de milhares de pessoas, exige confiabilidade tecnológica, segurança de dados e resposta imediata a violações. Atualmente, a tecnologia utilizada já é fornecida pela iniciativa privada, mas a fiscalização é responsabilidade exclusiva dos policiais penais — como deve ser.

A proposta de terceirizar o monitoramento eletrônico de presos transfere um mecanismo sensível de vigilância para a lógica do lucro, o que tende a reduzir investimentos em capacitação, estrutura e resposta imediata a violações, justamente os elementos essenciais para garantir sua eficácia. Em áreas onde a falha custa vidas, a racionalidade econômica empresarial pode comprometer a segurança coletiva.

Como demonstra o estudo Aspectos da Economia do Crime, de Pery Shikida (2024), o crime prospera em contextos em que o Estado é frágil, o controle institucional é ineficiente e os incentivos econômicos ao ilícito são elevados. Ainda que o estudo não trate especificamente da gestão privada de tornozeleiras, ele reforça a lógica segundo a qual ambientes com baixa capacidade estatal tendem a ser capturados por mercados ilícitos organizados — exatamente o que pode acontecer caso se fragilize o controle estatal sobre instrumentos de vigilância na execução penal.


O inciso III e a necessária atualização legal com responsabilidade.

O inciso III do substitutivo ao PL 2.694/2015 trata da prestação de serviços materiais, de saúde, jurídicos, educacionais, sociais e religiosos por empresas privadas no sistema prisional. Em termos práticos, formaliza uma realidade já consolidada: esses serviços são prestados há anos por meio de convênios com instituições privadas, parcerias com organizações da sociedade civil e iniciativas voluntárias. A assistência jurídica é realizada, em boa parte, por advogados constituídos; a saúde, ainda que ofertada prioritariamente pela rede pública, pode ser garantida em unidades privadas por ordem judicial; já a educação e a assistência religiosa são comumente executadas por entidades conveniadas.

Essa formalização representa, sim, um avanço jurídico, pois confere maior segurança e coerência normativa à execução penal. No entanto, a redação proposta é excessivamente genérica e pode abrir margem para interpretações que extrapolam o necessário. Isso é especialmente sensível quando se observa que o art. 34 da LEP restringe a atuação da iniciativa privada às oficinas de apoio (§2º) e não permite, em sua redação atual, a oferta do trabalho interno por empresas privadas.

É legítimo discutir a atualização desses dispositivos legais, mas ela deve ocorrer com técnica e limites claros. O risco do inciso III está justamente em funcionar como brecha para a terceirização irrestrita, inclusive de áreas estruturantes da política prisional, como se propõe nos demais incisos do texto.

A crítica, portanto, não é à colaboração da iniciativa privada, que pode ser benéfica e já ocorre, mas à falta de delimitação precisa. Atualizar a LEP com responsabilidade é necessário. Ampliar a terceirização em detrimento da segurança, não.


Risco de cooptação e corrupção

Funcionários terceirizados não estão submetidos ao mesmo grau de controle interno que os policiais penais concursados. Além disso, a rotatividade desses profissionais dificulta a construção de uma cultura organizacional voltada à disciplina e à legalidade, e serventia patriótica ao país.

Vale a reflexão: entre um policial penal concursado, com formação específica, estabilidade funcional e salário médio de R$ 12 mil, e um funcionário terceirizado recém-contratado, remuneração inferior, frequentemente em torno de R$ 3 mil, e sujeição a demissão imediata, quem estaria mais vulnerável à cooptação por organizações criminosas? A diferença não está apenas na remuneração, mas no compromisso institucional, na cultura organizacional e na responsabilização funcional que recai sobre o servidor público de carreira.

Esse ambiente é fértil para a atuação das facções. Como mostrou a recente operação contra o grupo “Comboio do Cão” no DF, relatada no relatório do NISP, o crime organizado busca constantemente infiltrar-se em estruturas vulneráveis, cooptando pessoas e informações em troca de favores ou dinheiro.

Como exemplo concreto, pode-se citar a operação realizada recentemente no Complexo Penitenciário da Canhanduba, em Santa Catarina, onde foram cumpridos diversos mandados judiciais contra funcionários terceirizados. Relatórios internos apontaram que, com o afastamento progressivo dos policiais penais das rotinas de segurança direta, houve aumento no ingresso de materiais ilícitos nas unidades, resultado da fragilidade dos mecanismos de controle aplicados à força de trabalho terceirizada.


Economia? Não há comprovação. Interesse? Há, e muito.

Não há, até o momento, qualquer avaliação de impacto ou estudo técnico que comprove a vantajosidade econômica da terceirização das funções previstas no substitutivo ao PL 2.694/2015. A previsão contida no artigo 83-C, que autoriza as contratadas a manterem estruturas próprias de supervisão e operação, com escalas específicas, revela, inclusive, uma tendência de expansão da estrutura de pessoal sob gestão privada, o que pode resultar em aumento de custos operacionais e maior complexidade contratual.

Outro ponto de preocupação diz respeito ao potencial uso político dos contratos. A autorização legal para que empresas privadas formem equipes próprias sem vinculação direta com concursos públicos ou critérios objetivos de mérito abre margem para indicações políticas. Na prática, isso pode transformar contratos penitenciários em instrumentos de acomodação de aliados, criando estruturas paralelas de pessoal — o que popularmente se conhece como “cabides de emprego”. Essa lógica enfraquece o princípio da impessoalidade na gestão pública e compromete a qualidade técnica das equipes envolvidas em tarefas sensíveis de segurança.

Tais evidências reforçam a necessidade de cautela na adoção de modelos híbridos em áreas de alta criticidade institucional. A eventual economia pontual não pode se sobrepor aos riscos estruturais para a segurança pública, à perda de capacidade estatal de gestão sobre o sistema prisional e à possibilidade de uso político inadequado da estrutura contratual. A proposta, portanto, serve mais ao financiamento cruzado de campanhas eleitorais do que à segurança pública.


Gerar riqueza com o cárcere: o fundo rotativo como alternativa racional

Reduzir custos não pode ser o fim em si mesmo quando se trata de segurança pública e gestão prisional. O verdadeiro desafio é repensar o funcionamento do cárcere com base na eficiência, responsabilidade institucional e geração de valor. Nesse cenário, os fundos rotativos surgem como alternativa mais técnica, sustentável e coerente do que a simples terceirização de funções sensíveis.

Previsto na Lei de Execução Penal e respaldado por órgãos como o CNMP e a SENAPPEN, o fundo rotativo utiliza a mão de obra dos presos em atividades produtivas, remuneradas e com retorno direto para o sistema prisional. Os bens e serviços são comercializados sob critérios empresariais, e a receita é reinvestida em qualificação profissional, manutenção das unidades e ações de ressocialização. Trata-se de uma política que une pedagogia, disciplina e viabilidade econômica — com ganhos concretos para o Estado, o interno e a sociedade.

Santa Catarina, Ceará e Paraná já comprovaram a eficácia do modelo: melhora nos indicadores financeiros, redução na reincidência e fortalecimento da disciplina interna (LAZAROTTO; SILVA; ZANI, 2020). A Política Nacional de Trabalho no Sistema Prisional (Decreto nº 9.450/2018) também segue essa linha, ao incentivar a inserção produtiva de pessoas privadas de liberdade como meio de reintegração e autofinanciamento da execução penal.

A lógica de apenas “gastar menos” é estreita. O caminho inteligente é transformar o sistema prisional de passivo financeiro em ativo institucional. Isso exige planejamento, investimento e valorização do trabalho prisional como instrumento de cidadania e de reordenação do ambiente interno.


Uma escolha política entre avanço e retrocesso

A criação da Polícia Penal como órgão de segurança pública constitucionalmente previsto, em 2019, foi um marco no fortalecimento institucional da execução penal como parte integrante da segurança pública. Delegar à iniciativa privada funções que são, por natureza, estatais — como o controle sobre pessoas presas — é andar para trás.

O fortalecimento da Polícia Penal — ainda em consolidação em muitos estados — exige investimento contínuo em estrutura, capacitação e valorização profissional. Substituir esse caminho por soluções terceirizadas não apenas fragiliza o controle estatal, como compromete a construção de uma cultura institucional sólida, comprometida com o interesse público. Trata-se, portanto, de escolher entre consolidar o protagonismo da segurança pública como dever do Estado ou delegá-lo a interesses privados, alheios à lógica do serviço essencial.

 

Conclusão

O sistema penitenciário é peça central da segurança pública. Sua função vai além da custódia: é instrumento de contenção do crime e de proteção da sociedade. Por isso, não pode ser orientado por metas de lucro, mas por objetivos claros de controle, segurança e reintegração.

Em um contexto de avanço do crime organizado, terceirizar funções estratégicas é um erro grave. Reduz a autoridade do Estado em espaços que exigem vigilância constante, controle qualificado e presença institucional firme. É ignorar que operações bem-sucedidas contra facções partem justamente do interior das prisões, com atuação técnica e coordenada do Estado.

Ao delegar tarefas sensíveis a empresas, o projeto fragiliza o sistema, compromete a segurança e rompe a lógica de fortalecimento institucional inaugurada com a criação da Polícia Penal. Combater o crime exige um Estado forte e preparado, não um Estado enfraquecido.

O projeto aprovado na Câmara é um retrocesso. Em vez de abrir mão do controle, o Brasil precisa reforçar sua presença no cárcere, valorizar seus quadros e investir em quem protege a linha de frente: o policial penal.


Referências

ABREU, João Renato B.; ANDREOTTI, Luciano; JARDIM, Micael. Raio-X do Sistema Penitenciário do Distrito Federal: Diagnóstico e Recomendações de Políticas Públicas. Brasília: NISP, 2024.

CNN BRASIL. Crime organizado se espalha pela economia e fatura R$ 350 bi em três anos. São Paulo: CNN Brasil, 19 abr. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/crime-organizado-se-espalha-pela-economia-e-fatura-r-350-bi-em-tres-anos/. Acesso em: 19 jul. 2025.

LAZAROTTO, Kellyn Regina; SILVA, Dirceu Rodrigues da; ZANI, Alecssandro. Fundo Rotativo do Sistema Prisional do Estado de Santa Catarina: case regional Chapecó. Revista Brasileira de Execução Penal, Brasília, v. 1, n. 1, p. 197–211, jan./jun. 2020. ISSN 2675-1895. Disponível em: https://rbepdepen.depen.gov.br/index.php/RBEP/article/view/93/69. Acesso em: 21 jul. 2025.

SHIKIDA, Pery Francisco Assis. Aspectos da economia do crime em unidades prisionais da região metropolitana de São Paulo: elementos teóricos e evidências empíricas. Informe GEPEC, v. 28, n. 2, p. 268-287, 2024.

 

 
 

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