por Rafael Erthal
Já há algum tempo, a sociedade brasileira tem deparado com decisões judiciais absolutamente lenientes com a criminalidade. Para o imenso público, muitas jurisprudências dos nossos Tribunais Superiores simplesmente não fazem sentido, não tem aderência alguma com a realidade objetiva.
A expressão em latim “vox populi, vox dei”, atribuída a diversas pessoas ao longo da história, manifesta o poder do povo, cuja voz é considerada como sendo originária dos deuses, e por isso indefectível e infensa a críticas.
Do ponto de vista estritamente político, a expressão de fato traduz certa legitimidade democrática. Ora, se “todo o poder emana do povo”, segundo a nossa própria Constituição (art. 1º, parágrafo único), então o provérbio latino tem certo sentido lógico.
Felizmente, contudo, o povo não é totalmente soberano nas suas decisões, principalmente quando tratamos de decisões judiciais. No nosso ordenamento, os juízes, em regra, são agentes públicos que ingressaram na carreira da magistratura por meio de concurso público de provas e títulos. Os juízes não são eleitos e não dependem de qualquer legitimidade democrática, ao menos em tese. Suas decisões não seguem o desejo popular majoritário – e há teoria constitucional defendendo que o papel da Suprema Corte é o de exercer a “corrente contramajoritária” na sociedade.
Bom, de fato não adotamos o sistema de common law no nosso ordenamento, típico de países de tradição anglo-saxã, como Estados Unidos e Inglaterra. Nesses ordenamentos, vários juízes são eleitos por meio de voto direto, secreto e universal, como se representantes do povo fossem (e realmente são). Com efeito, há controle democrático, ainda que indireto, sobre suas decisões: caso um juiz decida reiteradamente contra a opinião da maioria dos eleitores, é provável que no próximo pleito seja retirado do cargo. Essa mesma sistemática existe para a carreira do Ministério Público (os district attorneys) naqueles países.
Há prós e contras na adoção desse tipo de procedimento, o que é próprio de qualquer decisão política seguida por um país em que vigore o Estado democrático de Direito. Se de um lado existe incremento no poder popular sobre o mandato de juízes, por outros estes podem ficar reféns não de suas convicções jurídicas, mas sim da própria população que o elegeu.
No Brasil, adotamos o sistema de civil law, majoritariamente positivista, em que vigora a força da lei escrita e posta. Os costumes ou a opinião da população a respeito de certo tema não tem (ou não deveria ter) muita influência sobre o que os juízes decidem. Na verdade, a opinião da população se traduz nas leis que são aprovadas no Congresso Nacional, discutidas e votadas por meio de representantes do povo (deputados e senadores), estes sim eleitos pelo voto secreto, universal e periódico. Nossos juízes não são eleitos.
Como apresentado no início do texto, a maioria da população simplesmente não concorda, ou não entende, diversas decisões judiciais que tratam com leniência criminosos multirreincidentes ou perigosos. Não faltam exemplos dessas decisões na jurisprudência dos Tribunais Superiores.
A questão que se pergunta é: será que o absoluto afastamento da opinião dos nossos julgadores em relação à população em geral não significaria que a decisão beiraria o absurdo?
Carlos Maximiliano, um dos maiores juristas do século passado, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, tem um ensinamento bastante pedagógico para essa discussão: a interpretação das normas jurídicas não pode levar ao absurdo.
O absurdo aqui é entendido como algo absolutamente injusto, irrazoável, ilógico e sem qualquer adesão à realidade. Infelizmente, parece que o ensinamento de Carlos Maximiliano não tem sido seguido em determinadas decisões judiciais de nossos Tribunais.
Vamos exemplificar tratando do crime de dano ao patrimônio público.
O crime de dano é previsto no art. 163 do Código Penal (CP). Pune-se a pessoa que destrói, inutiliza ou deteriora coisa alheia, prevendo-se pena de detenção de um a seis meses, ou multa. Se o patrimônio for público, a pena é maior (dano qualificado – com pena de detenção, de seis meses a três anos, e multa):
Dano
Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Dano qualificado
Parágrafo único - Se o crime é cometido:
I - com violência à pessoa ou grave ameaça;
II - com emprego de substância inflamável ou explosiva, se o fato não constitui crime mais grave
III - contra o patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de Município ou de autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviços públicos;
IV - por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima:
Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Vamos, então, imaginar a seguinte situação hipotética: Mévio está preso em uma penitenciária estadual. Buscando fugir, Mévio serra as barras metálicas de sua cela, danificando-as de forma irreversível, e consegue escapar até a grade externa do presídio, onde é capturado. Neste caso, Mévio destruiu coisa alheia (as grades da cela), tratando-se de patrimônio público estadual (pois a penitenciária é de propriedade de determinado estado-membro, logo, as barras das celas também). Mévio, obviamente, será denunciado e processado pelo crime de dano qualificado (art. 163, parágrafo único, III, do CP), certo?
Parece uma pergunta simples, certo? Afinal de contas, Mévio danificou um bem público (as barras da cela em que se encontrava preso). Se conseguirmos explicar esses elementos para uma turma de alunos de oito anos de idade, é provável que a resposta seja unânime: é óbvio que Mévio praticou o crime de dano qualificado, e deve ser punido por tal conduta.
Bem, não é assim que pensa a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
No julgamento de processo criminal em situação semelhante (HC 503.970 – SC), em que o acusado serrara as grades de sua cela para fugir, a Quinta Turma do STJ absolveu o réu. Pela importância, trazemos parte da ementa da decisão, onde grifamos trecho importante – e assustador:
“Nesse passo, a destruição, deterioração ou inutilização das paredes ou grades de cela pelo detento, com vistas à fuga de estabelecimento prisional, ou, ainda, da viatura na qual o flagranteado foi conduzido à delegacia de polícia, demonstra tão somente o seu intuito de recuperar a sua liberdade, sem que reste evidenciado o necessário dolo específico de causar dano ao patrimônio público;
Vejamos que, para a Quinta Turma do STJ, o preso buscava apenas “recuperar a sua liberdade”. Se para isso ele tem de danificar estruturas estatais, que terão de ser reconstruídas ou repostas com recursos arrecadados, normalmente por meio de elevados tributos – pagos inclusive pelas vítimas dos criminosos –, isto é mero detalhe. O importante é que o preso teria danificado patrimônio público apenas para “recuperar sua liberdade”.
A decisão soa inacreditável para qualquer pessoa leiga, ou que ao menos não tenha sido contaminada por raciocínio jurídico totalmente temerário e – conforme Carlos Maximiliano – absurdo.
O absurdo, neste caso, vem de duas formas: primeiro, o STJ exige uma intenção (dolo específico) do acusado que não existe no tipo penal de dano; e de outro lado, gera um fato absolutamente incompreensível para qualquer pessoa com bom senso: a total falta de punição para um indivíduo que de fato, inegavelmente, danificou um patrimônio público.
A linguagem e o funcionamento do Direito, muitas vezes, não se confundem com ritos, costumes e práticas ditas “populares”, coloquiais. Cada conhecimento tem seu próprio jargão e método de raciocínio (ou de interpretação de seus elementos). Mas o que nenhuma ciência pode fazer é ignorar a realidade.
Partindo-se da premissa de que existe uma “ciência jurídica”, então esse ramo do conhecimento não pode ignorar a realidade, sob pena de se invalidar totalmente o método científico, baseado elementos como a visualização do que é posto faticamente, concretamente, perante observador.
Se existe o crime de dano, e o sujeito danifica um bem público, nada mais natural e esperado do que ele responder por tal delito (ignorando aqui qualquer circunstância excludente de crime). O esforço argumentativo para excluir o cometimento do delito é semelhante àquele realizado para negar a própria realidade. É o “dano de Schrödinger (1)”: ele existe e não existe ao mesmo tempo.
Já que entramos um pouco na física quântica, muitos juristas se esmeram em desenvolver teorias que mimetizam, que tomam emprestado conceitos do mundo físico. Há o “direito penal quântico”, por exemplo – seja lá o que isso queira dizer na prática.
Bem, talvez não precisemos ir tão longe na ciência moderna. Os nossos Tribunais Superiores, talvez, devessem começar pelo início, pela física clássica. Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. Um corpo em movimento possui energia cinética. Um indivíduo, preso, que aplica força contínua contra barras metálicas, irá acabar por cortá-las, rompendo sua estrutura material atômica (e danificá-las, em último caso). Se o sujeito ativo pratica essa conduta no mundo real, está incurso no crime de dano qualificado – em se tratando de patrimônio público –, previsto no art. 163, parágrafo único, III, do Código Penal.
Negar isso é negar a própria realidade. É afirmar um absurdo: que o dano existe e não existe ao mesmo tempo. O dano de Schrödinger.
(1) Expressão inspirada na teoria de Erwin Schrödinger, físico austríaco ganhador do Prêmio Nobel por seus trabalhos com física quântica. No experimento mental de Schrödinger, imaginado com um gato, este poderia estar vivo e morto ao mesmo tempo.