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O Caráter Alucinatório das Evidências e a Criminalização Antecipada da Atividade Policial

  • Vinicius Rocha
  • 4 de mai.
  • 5 min de leitura

Por Vinicius Rocha, colaborador do Instituto NISP


A crescente espetacularização das ações policiais na mídia, aliada à fragilidade de determinadas construções probatórias no processo penal, tem gerado um fenômeno preocupante: a condenação antecipada de policiais militares, tanto no tribunal da opinião pública quanto no Judiciário, frequentemente sem o devido exame crítico das evidências apresentadas. Essa dinâmica, que converte operações de segurança pública em espetáculos midiáticos baseados em narrativas parciais ou evidências não submetidas ao crivo do contraditório, expõe uma tensão crítica entre liberdade de imprensa, garantias processuais e atividade policial.

Inspirado na teoria do caráter alucinatório das evidências, desenvolvida por Salah H. Khaled Jr., este artigo propõe uma análise crítica do modo como a atuação policial é interpretada e julgada. A teoria, que descreve a atribuição de veracidade a elementos probatórios frágeis revestidos de credibilidade por apelo emocional ou repetição midiática, revela-se fundamental para decifrar como construções narrativas distorcidas – sustentadas por vídeos editados, testemunhos selecionados e coberturas superficiais – alimentam decisões judiciais enviesadas e a criminalização simbólica de agentes de segurança.

O objetivo central é demonstrar como a ausência de contraditório efetivo, somada à influência da opinião pública e à superficialidade na coleta e interpretação das provas, consolida um ciclo perverso: a mídia transforma-se em arena de julgamento prévio, enquanto o sistema penal, pressionado pelo clamor social, negligencia a contextualização operacional e a análise técnica robusta. Para tanto, o estudo articula análise doutrinária, revisão de um caso emblemático e contribuições interdisciplinares da epistemologia jurídica, da comunicação social e da segurança pública.


O Caráter Alucinatório das Evidências

O professor Khaled Jr. define o caráter alucinatório como a atribuição de veracidade a evidências não validadas, mas revestidas de credibilidade por sua repetição midiática ou apelo emocional. Essa dinâmica substitui a análise técnica por uma “ilusão de concretude”, onde a prova é validada por sua força retórica, não por sua materialidade.

A prova judicial, em casos envolvendo policiais, frequentemente se converte em um artefato narrativo. Vídeos editados, testemunhos selecionados e laudos parciais são descontextualizados para construir uma história coesa, mas incompleta, que ignora variáveis operacionais (ex.: tempo de reação em confrontos).

O processo penal tradicional, ao priorizar a “verdade formal” sobre a “verdade real”, falha em exigir contextualização robusta das provas. A mera existência de imagens ou depoimentos é tratada como suficiente, mesmo quando desvinculada de critérios como proporcionalidade e razoabilidade.


Caso paradigmático de exposição de policiais

A cobertura midiática de operações policiais frequentemente ignora nuances contextuais em favor de narrativas espetaculosas, gerando distorções que ecoam no Judiciário. Um exemplo emblemático é a Operação na Favela do Jacarezinho (Rio de Janeiro, 2021), uma das mais letais da história do Rio, com 28 mortos, incluindo um policial. A imprensa, em suas primeiras horas de cobertura, destacou o número de vítimas e veiculou imagens de corpos em locais públicos, acompanhadas de termos como “massacre” e “banho de sangue” (Globo News, 06/05/2021).

No entanto, apurações posteriores revelaram aspectos omitidos na narrativa inicial:

A) Contexto operacional: a ação visava cumprir mandados contra integrantes de uma facção criminosa que controlava a região, com histórico de ataques a policiais;

B) Resistência armada: Laudos do Instituto Médico-Legal (IML) confirmaram que 27 dos 28 mortos apresentavam sinais de troca de tiros, e armas foram apreendidas no local (Correio Braziliense, 10/05/2021); e

C) Repercussão judicial: apesar das evidências de confronto, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) abriu investigação por “excesso de força”, pressionado por manifestações públicas alimentadas pela comoção midiática.

A teoria do caráter alucinatório das evidências se aplica aqui: vídeos de celulares, editados para destacar corpos e excluir cenas de tiroteio, foram tratados como “provas incontestáveis” pela mídia. A ausência de contextualização sobre a dinâmica de operações em territórios controlados pelo crime organizado reforçou a ideia de “execuções sumárias”, mesmo antes da conclusão do inquérito. O caso gerou um relatório do MPRJ (2022) que, embora critique falhas no planejamento da operação, reconheceu a legitimidade do confronto armado – fato amplamente ignorado pela grande imprensa.

Esse caso ilustra como a seletividade narrativa da mídia – aliada à urgência por cliques e audiência – converte operações complexas em espetáculos de horror, ignorando evidências técnicas e pressionando o sistema de justiça a agir sob viés confirmatório.


A Criminalização da Atividade Policial

Ações como uso de força letal em confrontos são frequentemente retratadas como arbitrariedades, sem considerar protocolos de segurança ou a dinâmica caótica de operações reais. A militarização da polícia é usada como metonímia para suposta violência institucional.

Decisões judiciais baseiam-se em fragmentos de provas (ex.: vídeo de 30 segundos de um confronto de 2 horas), ignorando relatórios técnicos sobre risco iminente ou comportamento da vítima. A criminalização de policiais cumpre função simbólica: acalmar a opinião pública e demonstrar “ação estatal” contra a violência, mesmo que às custas de injustiças individuais.


Implicações Jurídicas e Sociais

O art. 5º, LVII, da Constituição Federal[1], que homenageia a presunção de inocência, é cuidadosamente mitigado quando a mídia trata policiais como “culpados até que se prove o contrário”. Isso inviabiliza julgamentos justos e estimula condenações por publicização do caso, principalmente no Tribunal do Júri.

Nesse contexto, vale destacar que juízes, expostos a narrativas midiáticas, internalizam vieses que contaminam a interpretação das provas. Estudos como os do psicólogo e economista Daniel Kahneman sobre viés cognitivo explicam como a repetição de informações falsas gera certezas de igual natureza.

Outro ponto que merece atenção são os impactos sobre a segurança pública e o aspecto moral da tropa. A criminalização antecipada desestimula ações proativas de policiais, gerando o fenômeno do policiamento passivo, o denominado “depolicing”, que favorece o avanço do crime organizado.


Considerações Finais

A interseção entre mídia e processo penal exige um reequilíbrio entre liberdade de imprensa e garantias fundamentais. Sem freios ao caráter alucinatório das evidências, a justiça transforma-se em instrumento de espetáculo, e a atividade policial, em mero bode expiatório de crises sociais estruturais.

Nesse sentido, observamos ser necessário a criação de protocolos para “blindagem probatória” em casos midiáticos, com exigência de perícias independentes e direito à ampla defesa antes da divulgação de informações, é medida que se apresenta como urgente no atual cenário. Isso tudo sem prejuízo de eventual responsabilização civil por dano moral ao policial ofendido, ou à própria corporação.

Julgamos também ser necessário que juízes sejam treinados para demandar contextualização operacional (ex.: laudos sobre distância de disparos, análise de áudio em vídeos) bem com rejeitar provas não submetidas ao crivo técnico.

Por óbvio, limites éticos na cobertura midiática de ações policiais devem ser estabelecidos e aplicados. Defendemos a produção de um código de conduta para jornalistas, com vedação ao uso de termos tendenciosos e obrigatoriedade de ouvir a versão das autoridades antes da veiculação de matérias.


Vinicius Rocha é bacharel em direito, pós graduado em Direitos humanos, Criminologia e Docência do Ensino Superior. Professor de Direitos Humanos e Legislação Extravagante em cursos preparatórios para concursos públicos. Terceiro-Sargento da Policial Militar do Distrito Federal e atualmente instrutor de Defesa Pessoal Policial Militar no curso de formação de praças.


[1] Art. 5º, “caput”, LVII, CF - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

 
 

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