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Facções criminosas e mercado imobiliário no Brasil: os modernos senhores feudais

  • Foto do escritor: Rafael Erthal
    Rafael Erthal
  • 31 de mai.
  • 8 min de leitura

1. Evolução histórica da concentração fundiária no Brasil

A formação de grandes latifúndios no território brasileiro data do sistema de sesmarias (1530‑1822), quando a Coroa portuguesa concedeu glebas extensas a capitães‑donatários, consolidando um padrão de posse concentrada[1]. A Lei de Terras (Lei nº 601/1850) determinou a compra e venda registrada em cartório como via exclusiva de aquisição dominial, transformando terras devolutas em propriedade do Estado e reforçando o viés concentrador: as terras particulares já eram de grandes fazendeiros e senhores de engenho; as públicas ficaram concentradas na União, centralizando a propriedade no ente.

O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964) introduziu o conceito de função social da propriedade rural e previu desapropriação por interesse social, mas enfrentou execução limitada, apesar de seus avanços importantes no quadro normativo que previa reforma agrária. Mesmo na vigência da Constituição de 1988, que alçou a reforma agrária e a política urbana a deveres dos entes federados (arts. 182‑184), o Censo Agropecuário de 2017[2] confirma a permanência da desigualdade: 1 % dos proprietários controlam 47 % da área rural, ao passo que metade dos proprietários detém apenas 2,3 %; o Índice de Gini fundiário alcança 0,867[3]; e a quantidade de propriedades informais alcança o patamar de aproximadamente 8 milhões de imóveis.

No âmbito patrimonial público, a União detém cerca de 740 mil imóveis avaliados em R$ 1,35 trilhão[4] – estoque subutilizado que expressa, simultaneamente, ineficiência administrativa e potencial de captura por agentes ilícitos. Se as terras federais não estão sendo aproveitadas pelo próprio poder público, é ingenuidade achar que nenhum outro indivíduo – principalmente aqueles ligados às organizações criminosas – irá explorá-las.

 

2. Quadro normativo urbano

O Capítulo II do Título VII da Constituição estabelece a política de desenvolvimento urbano, regulamentada pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001). O art. 4º da Lei enumera instrumentos tributários, jurídicos e políticos capazes de induzir o cumprimento da função social dos imóveis urbanos. Ganham relevo, para populações vulneráveis, os institutos que dispensam desembolso imediato: Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia (Cuepfm), Usucapião Especial Urbana, Regularização Fundiária (Lei nº 13.465/2017), Demarcação Urbanística e Legitimação de Posse. Tais mecanismos permitem ao poder público converter ocupações precárias em títulos registráveis, incorporando assentamentos ao tecido formal da cidade. Isso tudo sem dispêndio imediato do poder público para adquirir os imóveis.

Todavia, a execução é desigual: lacunas de fiscalização, morosidade cartorial e disputas políticas criam brechas, que são rapidamente exploradas por organizações criminosas.

Quanto às terras particulares, a Constituição Federal[5] e o Estatuto da Cidade preveem mecanismos como o parcelamento e a edificação compulsórios; o IPTU progressivo no tempo e a desapropriação para interesse social, caso as propriedades não cumpram sua função social. Em que pese haver certa insegurança jurídica a respeito do conteúdo semântico do termo “função social da propriedade”[6], é bem verdade que há casos absolutamente óbvios de completo abandono da terra pelos proprietários particulares. Nesse sentido, poucos são os casos concretos de utilização das sanções previstas a essas propriedades, devido ao evidente impacto político-eleitoral das medidas.

 

3. Inserção de facções no mercado imobiliário

3.1 Dinâmica das milícias no Rio de Janeiro

Originadas na década de 1970 sob o discurso de "autodefesa comunitária", as milícias evoluíram de grupos paramilitares compostos por policiais para conglomerados que articulam força armada, influência político‑eleitoral e diversificação de receitas. Atualmente, há diversos grupos milicianos que não são mais compostos exclusivamente por policiais, apesar da comum relação com agentes públicos estatais.

Alguns pesquisadores consideram o “Esquadrão de Motociclistas” (EM) o embrião das milícias. A sigla ― que, segundo essa tese, aludiria não aos veículos usados, mas ao “Esquadrão da Morte” ― surgiu em 1965, após o assassinato do investigador da Polícia Civil Milton Le Cocq. O autor do crime teria sido Manoel Moreira, o “Cara de Cavalo”, posteriormente localizado e executado com, ao menos, 50 disparos de arma de fogo[7].

Veteranos do Esquadrão de Motociclistas, liderados pelo investigador Euclides Nascimento, criaram a Scuderie Detetive Le Cocq em homenagem a Milton. Embora registrada como associação “cívico-filantrópica”, a entidade foi rapidamente apontada pela imprensa como o primeiro “esquadrão da morte” do Rio de Janeiro. Entre seus integrantes estavam policiais notórios à época, como Mariel Mariscot (“Ringo”), José Guilherme Godinho Ferreira (“Sivuca”), Aníbal Beckman dos Santos (“Cartola”) e Hélio Guahyba Nunes ― parte do grupo que a mídia apelidou de “Doze Homens de Ouro da Polícia Carioca”. A Scuderie adotou o símbolo “E.M.” e passou a reivindicar execuções sumárias de criminosos, estabelecendo um precedente direto para as milícias que surgiriam nas décadas seguintes.

Progressivamente, os grupos milicianos aumentaram o rol de atividades econômicas que controlavam em suas comunidades, como transporte público local (vans), “taxas de segurança”, TV a cabo, gás e fornecimento de internet.

Pesquisas do GENI/UFF (Hirata et al., 2021) evidenciam que, entre 2007 e 2020, distritos com predomínio miliciano sofreram menor repressão policial e registraram maior regularização fundiária urbana – inclusive por meio do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) – em comparação a territórios controlados por facções tradicionalmente ligadas ao tráfico de drogas, como o Comando Vermelho (CV) e o Terceiro Comando Puro (TCP).


Figura 1. Distribuição territorial dos principais grupos criminosos no município do Rio de Janeiro. Retirado de HIRATA, Daniel et al. A Expansão das Milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Niterói: GENI/UFF; Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles, 2021.
Figura 1. Distribuição territorial dos principais grupos criminosos no município do Rio de Janeiro. Retirado de HIRATA, Daniel et al. A Expansão das Milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Niterói: GENI/UFF; Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles, 2021.

Figura 2. Sobreposição entre áreas de atuação preponderante de milícias e a presença de condomínios do MCMV. Retirado de HIRATA, Daniel et al. A Expansão das Milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Niterói: GENI/UFF; Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles, 2021.
Figura 2. Sobreposição entre áreas de atuação preponderante de milícias e a presença de condomínios do MCMV. Retirado de HIRATA, Daniel et al. A Expansão das Milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Niterói: GENI/UFF; Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles, 2021.

3.2 Estratégias de captura fundiária

As práticas conduzidas pelos grupos criminosos – principalmente pelas milícias – incluem (i) grilagem de áreas públicas ou ambientalmente protegidas (muitas das quais APPs), com posterior parcelamento clandestino e venda; (ii) invasão de imóveis consolidados após a conquista territorial; (iii) controle do mercado imobiliário por meio de transações legais—cobrança de "taxas" que podem chegar a 50 % do valor do negócio; e (iv) especulação deliberada: fomento a degradação socio‑urbana para redução artificial de preços e posterior revenda, estratégia documentada no caso da "Cracolândia" paulistana, no coração da capital[8]; e (v) regularização fundiária das terras invadidas por meio de procedimentos “acelerados” pelos contatos existentes no poder público, principalmente o municipal, pois a destinação da terra urbana do município depende do quanto consta no Plano Diretor, lei discutida e aprovada pelas Câmaras Municipais e sancionada pelo prefeito.

 

3.3 Apropriação de programas habitacionais

Relatório produzido pelo GENI demonstra clara sobreposição espacial entre conjuntos do Programa MCMV e zonas sob hegemonia miliciana, indicando que pode haver favorecimento do programa para locais e áreas já dominadas pelos grupos criminosos.

Ainda que a localização escolhida pelo poder público seja lícita, a captura do conjunto habitacional do MCMV inicia‑se ainda na fase de obras (vigilância privada, pactos com construtoras etc.) e prossegue com expulsões ou extorsões de beneficiários, seguida da revenda ilegítima das unidades, muitas vezes dentro das próprias comunidades, por meio de “laranjas”. A localização periférica e a fragilidade da presença estatal nos empreendimentos ampliam a vulnerabilidade – o que é uma das principais críticas feitas ao programa, diga-se de passagem.

Dados indicam que a maior parte do faturamento das organizações criminosas cariocas hoje não advêm do tráfico de drogas, mas sim da exploração do território dominado: seja por meio de comercialização ilícita de propriedades imóveis, seja por meio da cobrança de taxas variadas sobre atividades econômicas regulares ocorridas no local.

 

4. Implicações institucionais

Após o domínio territorial pleno do local, inicia-se a formação de "currais eleitorais": a coação de moradores para apoiar candidaturas alinhadas ao grupo criminoso, resultando em projetos de lei que flexibilizam parâmetros urbanísticos e anistiam construções clandestinas, retroalimentando todo o sistema. Como exemplo, podemos citar o PLC 174, de 2016, apelidado de "PL da Grilagem". Alguns dos envolvidos nesse PL estariam ligados à morte da então vereadora Marielle Franco, vítima de homicídio justamente por lutar contra iniciativas legislativas desse calibre, que acabam por regularizar situações absolutamente ilegais e criminosas de invasão de terras.

Outro efeito perverso do domínio é o dispêndio de recursos do Estado para custear regularizações fundiárias em territórios que são ou serão dominados por milicianos, tratando-se, portanto, de verdadeiro financiamento público de organizações criminosas.

Distorções de mercado produzidas também são dignas de nota, considerando que a intermediação coercitiva reduz arrecadação tributária, encarece o solo urbano regular e desestimula investimento lícito em moradia popular.

 

5. Conclusão

A análise aqui trazida evidencia que o fracasso da política fundiária urbana brasileira – marcada por execução irregular dos instrumentos do Estatuto da Cidade e subutilização do vasto patrimônio público imobiliário – abre espaço para que facções criminosas se apropriem ilegalmente do vácuo criado, principalmente em locais periféricos e já vulnerabilizados pela ausência ou insuficiência de agência estatal, agravando desigualdades e minando a autoridade governamental. O enfrentamento demanda programas de regularização que combinem titulação rápida, assistência jurídica e presença continuada de serviços públicos. A efetividade de qualquer dessas políticas depende de repressão rápida, eficaz e certa dos grupos criminosos – o que invariavelmente demanda alterações legislativas que fogem do âmbito local (mudanças no Código Penal e na legislação processual penal etc.).

Também se exige articulação das políticas habitacionais, de modo a baratear os custos do crédito, como fez Singapura em sua política habitacional de sucesso nos anos 1960 e 1970. Com imensa parcela de moradias de natureza informal, Singapura conseguiu, por meio de diversos programas habitacionais interrelacionados, resolver o problema de habitação: hoje, mais de 90% dos habitantes do país são proprietários de imóveis.


[1] FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (EdUSP), 2006.

[2] BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2017: resultados definitivos. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. Disponível em: https://censoagro2017.ibge.gov.br. Acesso em: 31 de maio de 2025.

[3] O Índice de Gini Fundiário é um coeficiente estatístico que mede o grau de concentração da propriedade da terra em determinada área (município, estado ou país). Quanto mais próximo de 1,00, maior a concentração fundiária; valores acima de ≈ 0,6 já indicam forte desigualdade estrutural no acesso à terra.

[4] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 160/2024 – Plenário. Relator: Ministro Jhonatan de Jesus. Processo n. 021.510/2023-7. Sessão de 7 fev. 2024. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 9 fev. 2024.

[5] BRASIL. Constituição Federal. Art. 182. (...) § 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

[6] O Estatuto da Cidade traz um conceito a respeito do termo, em seu art. 39, caput: “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei.”

[7] VENTURA, Zuenir. Cidade partida. 1. ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1994.

[8] CAPPELLI, Paulo; VIANA, Petrônio. PCC monta “imobiliária” e lucra comprando e vendendo imóveis em SP. Metrópoles, 12 nov. 2024. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/paulo-cappelli/pcc-monta-imobiliaria-e-lucra-comprando-e-vendendo-imoveis-em-sp. Acesso em: 31 de maio de 2025

 
 

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