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Olho Vivo, Porém Míope

Crítica ao Relatório de Pesquisa do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública (FGV), de 2022.



Rafael Erthal Corrêa de Sá

Juliano de Andrade Gomes


  1. Introdução


O Programa Olho-Vivo foi uma iniciativa do Estado de São Paulo, iniciada ainda no governo João Dória, em 2020, e teve o intuito, entre outros, de minimizar a quantidade de mortes em confronto policial com a instalação de câmeras corporais de gravação contínua em determinados batalhões da PMESP.


A utilização de câmeras corporais em policiais tem provocado imenso debate público no Brasil. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, mais precisamente por meio de seu presidente, ministro Luís Roberto Barroso, determinou que a Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) procedesse à instalação de câmeras corporais em seus agentes, considerando casos de abusos policiais.


Na própria decisão, o ministro Barroso cita expressamente o estudo de que trata este artigo, conduzido por pesquisadores do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública (CCAS) da Fundação Getulio Vargas (FGV):



Considerando a atualidade e a importância da discussão, o objetivo deste artigo é discutir e tecer eventuais críticas a respeito do estudo produzido pelo CCAS, citado anteriormente. A escolha se deu em virtude de ser um dos únicos estudos conduzidos no Brasil a respeito do tema, que efetivamente analisaram o impacto da instalação de câmeras em policiais, e também pelo fato de ser frequentemente citado – principalmente pelos defensores da utilização da tecnologia.


Para qualquer implementação de política pública, é necessário que, primeiro, se estabeleçam as premissas básicas de sua real validade do ponto de vista da eficácia, isto é, se o instrumento é adequado para atingir determinado fim. Ainda que se considere a dificuldade de se estabelecer certezas a respeito de fenômenos sociais, influenciados por fatores multivariados, deve-se, ao menos, ter certa segurança a respeito da eficácia da política pública além de dúvida razoável. A incerteza científica, fundamento que é inerente a qualquer pesquisa que se proponha séria, sempre estará presente. Mas quando se fala em intervenções que podem custar milhões de reais aos cofres públicos, ao menos a maioria dos estudos devem apontar para determinado sentido: o de sua eficácia – o que não se observa no caso em questão.


Até o momento, a maior parte da literatura apresenta resultados inconclusivos a respeito da eficácia de câmeras corporais para modificar comportamentos policiais violentos,,,,,,,,, motivo pelo qual – além da análise do estudo em questão – o tema é de tão vital importância, tendo este trabalho o fito de colaborar para o debate.


  1. Análise do estudo em questão: “Avaliação do impacto do uso de câmeras corporais pela Polícia Militar do Estado de São Paulo”


    1. Breve resumo do artigo


O estudo em questão analisou o impacto de câmeras corporais portáteis (COP) em batalhões da Região Metropolitana de São Paulo sobre o uso da força policial, discutindo os possíveis mecanismos que explicaram os resultados encontrados.

O grupo de tratamento, composto por unidades da PMESP, utilizou câmeras corporais no período do estudo (entre junho de 2021 e julho de 2022). O denominado grupo controle foram as unidades cujos agentes não as utilizavam.

Segundo os resultados obtidos, nas áreas em que os agentes utilizaram a tecnologia, as mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) foram reduzidas em 57% em relação às áreas que não adotaram. As lesões corporais decorrentes de intervenção policial (LCDIP) seguiram na mesma direção, com uma queda de 63%.  Adicionalmente, não foram identificadas reduções em indicadores que podem refletir mudança de esforço policial, como prisões e ocorrências criminais.


b. Críticas metodológicas


De acordo com o estudo, o grupo de tratamento foi composto de unidades policiais de determinadas áreas da região metropolitana do estado, que segundo a publicação apresentavam, inclusive, níveis maiores de violência policial. O grupo controle, por outro lado, foram outras unidades policiais que não adotaram o uso da câmera.


O estudo cita que foram analisados “batalhões territoriais da Região Metropolitana da Capital”, assim como unidades especiais de Campinas, Santos e São José dos Campos, sem, no entanto, nominar quais foram os batalhões envolvidos no estudo, ou, pelo menos, quais foram as regiões metropolitanas da Capital que foram analisadas. Foram todas? Quais? As de menor índice de criminalidade ou de maior?


É importante compreender a impossibilidade, na prática, de delinear um estudo a respeito da eficácia da utilização de câmeras corporais utilizando a metodologia de duplo-cego, ou seja, em que nem os observadores, nem os observados (neste caso, os policiais militares), saibam qual indivíduo pertence ao grupo controle e qual pertence ao grupo de tratamento.

Entretanto, esse fato – a inexistência de efetivo “grupo controle” – deveria ter sido mais bem explorado no estudo, considerando a existência de inúmeras variáveis que podem interferir no comportamento dos indivíduos observados, como o conformismo temporário ao estudo e efeito do transbordamento.


A suposição feita expressamente no estudo, de que “não houve efeitos de transbordamento”, nos parece não refletir a realidade. Entende-se por transbordamento o fenômeno de que um policial militar de determinada área acabe por patrulhar ou adentrar a região de outra. 


Não há qualquer elemento no estudo que possibilite chegar a essa conclusão. Também não houve discussão a respeito dessa hipótese ao longo do estudo.


A experiência policial, aliás, nos informa justamente o contrário. É comum a atuação de unidades de outros batalhões, principalmente aqueles adjacentes ou que cuidam da mesma área, em ocorrências policiais, mormente quando se trata de situações de alta complexidade ou que sejam de maior gravidade – justamente aquelas mais enfatizadas pelo estudo, em que ocorrem mortes ou lesões corporais em virtude de intervenções policiais.

Além da possibilidade de transbordamento, o estudo não analisou a possibilidade de “contaminação”, observada e analisada por diversos autores de estudos que analisaram o impacto de câmeras corporais na atividade policial.


Resumidamente, a “contaminação” ou o “efeito de derramamento” ocorre quando um agente que está portando câmera corporal influencia no comportamento de outro, que não está usando a tecnologia. Nesse sentido, apesar de todo o batalhão de determinada área estar utilizando a câmera corporal, essa circunstância pode “contaminar” batalhões de áreas adjacentes, que não estejam usando a tecnologia. Não observamos essa discussão no artigo, o que consideramos importante, dada a inexistência de grupo controle efetivo no estudo em questão.


c. Questionamentos a respeito dos resultados


Os resultados apresentados pelos autores do estudo são promissores. Entretanto, entendemos que vários dos resultados carecem de qualidade estatística, conforme iremos demonstrar.


Inicialmente, a Tabela 2, reproduzida a seguir, demonstra o impacto estimado do uso das COP sobre indicadores de uso da força pelos policiais.



Conforme relatado pelo artigo, a redução de MDIP teria sido de 57%. Entretanto, esse valor foi obtido, ao que parece, dividindo o efeito médio da primeira coluna (-0,220) por 0,385 (que é o valor da média global – “média variável dependente”, e não o valor do local tratado).


O valor correto – considerando o local de intervenção – seria próximo, mas diferente: de 53% (0,220/0,415), isso considerando que o resultado fosse estatisticamente significativo, o que será discutido a seguir.


Da mesma forma a redução de LCDIP, segundo a tabela, foi de 63%. Repetindo-se a mesma formulação, chegamos ao valor de 57,6% (0,393/0,682), quando consideramos não o valor da “média variável dependente”, mas sim o valor real da mesma unidade policial tratada.


O cálculo a respeito do número de mortes “evitadas” pela existência de câmeras (104) não ficou suficientemente demonstrado, ao menos nos dados fornecidos pelo artigo (os dados brutos não estão disponíveis na plataforma onde o estudo está disponível).


Apenas a título de tentativa, considerando a média de 0,415 MDIP das unidades “com câmera” (Tabela 1 trazida), se multiplicarmos esse valor pelo número de batalhões da mesma tabela (127), chegamos o valor de 52,7 mortes em um ano. Pergunta-se: como se pode evitar 104 mortes em 14 meses se a média anual (12 meses) é de 52,7 mortes?


Apesar de não constar expressamente na legenda da Tabela 2, os asteriscos parecem indicar que os dados são estatisticamente significativos, sem, no entanto, nos informar o grau de significância (CI > 68%, 95%, 99%, ou maior).


Nesse sentido, para complementar os dados da Tabela 2, os autores mostram, na Figura 3, trazida abaixo, o impacto estimado do uso das COP sobre Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIP) por bimestre:



Essa figura parece indicar que, depois da intervenção (instalação de câmeras – pós-tratamento), o número de MDIP variou negativamente, ou seja, diminuiu, indicando que houve menos mortes por intervenção policial após a adoção das câmeras policiais.


O importante aqui é analisar o gráfico, seu intervalo de confiança indicado (95%) e se há sobreposição dos valores mostrados na figura – considerando o intervalo de confiança indicado. A sobreposição frequente dos valores indica que eles não são estatisticamente significativos, pois é possível que estejam dentro de mesmos intervalos. Ou seja, não haveria diferença estatística entre eles.


Para facilitar a compreensão, vamos voltar à análise da Figura 3, trazida pelos autores, agora com a inserção de uma barra linear conectando todos os valores existentes na figura.



Veja que é possível traçar um retângulo – e não somente uma linha – entre todos os valores mostrados na figura, considerando o intervalo de confiança de 95% informado pelos autores, de modo que é estatisticamente possível que todos os valores de MDIP estejam dentro desse intervalo construído.


Nesse sentido, ainda que se possa sugerir que a média dos valores pré-tratamento seja menor do que aquela pós-tratamento, simplesmente não é possível determinar estatisticamente que há diferença significativa entre os valores de MDIP antes e depois da intervenção das câmeras corporais, pois as respectivas médias se encontram dentro do mesmo intervalo de confiança de 95%.


É importante afirmar que é possível que as câmeras tenham de fato reduzido as MDIP, conforme defende o estudo. Mas isso é apenas uma possibilidade estatística, e não uma realidade estatística, de modo que o estudo peca em não discutir esse fato. Pelo contrário, nas considerações finais, o estudo simplesmente conclui que “a introdução das câmeras corporais causou uma redução significativa na média de casos de uso da força policial, em especial de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial”, o que, frisa-se, não é possível de se afirmar com os dados disponibilizados pelo estudo em questão.


Há outros gráficos com problemas estatísticos semelhantes no estudo (Figuras 4 e 5). Trataremos a seguir da Figura 4.



Como se observa nesta figura – e utilizando a mesma metodologia anterior (retângulo vermelho) passando por todos os valores de pessoas presas em flagrante (eixo y) –, não há diferença estatisticamente significativa entre eles nos bimestres estudados, fato que é revelado pela Tabela 3 (efeito médio 0,534, sem asteriscos, o que denota a ausência de relevância estatística) e corroborado pelo próprio relato do estudo (página 17): “O número de Presos em Flagrante não se alterou nas companhias que receberam as câmeras (coluna 1)...”.


Ou seja, o próprio estudo reconhece a ausência de efeito estatístico significativo em determinados casos (como o número de prisões em flagrante), mas omite essa realidade em outro caso, mais importante para as finalidades do estudo (mortes em detrimento de intervenção policial), sem qualquer motivo relevante.


Com relação ao impacto sobre o esforço policial, o estudo sugere que “não houve redução de esforço”, indicando que a utilização das câmeras corporais não produziu o fenômeno de depolicing, ou seja, redução da atuação policial no policiamento ostensivo.


Ocorre que o fenômeno de depolicing pode não significar simplesmente a redução da atuação quantitativa da polícia, mas sim um desvio qualitativo para ocorrências geradoras de menor risco para os policiais ou que sirvam apenas para demonstrar o mero exercício da função, sem que sejam objetivadas intervenções policiais que mereçam prioridade. 


Em outras palavras, a hipótese explicativa para esse fenômeno é a seguinte: apesar de os policiais atenderem o mesmo número de ocorrências policiais, essas ocorrências tendem a apresentar menos perigo para os agentes, sabendo que estarão sendo filmados e sujeitos a maior escrutínio em situações críticas, que possam vir a exigir o uso de força letal.


Um dos exemplos – que inclusive consta do estudo – são as ocorrências de violência doméstica, conhecidas como “Maria da Penha”, que tiveram aumento significativo, conforme demonstrado pela Tabela 4. Da mesma forma, ocorrências de porte de drogas também tiveram aumento significativo (excetuadas as ocorrências de violência doméstica, um dos dois únicos casos, ao lado de porte de armas), frente a homicídios e roubos, que apresentam maior nível de complexidade operacional.


Com efeito, sugere-se que o fenômeno de depolicing de fato ocorreu no estudo em questão, apesar de ter sido negado pelos autores. O que houve, no entanto, foi o desvio de atuação policial para ocorrências de naturezas menos complexas, como violência doméstica e porte de drogas (dois entre os três tipos de ocorrências que tiveram aumento significativo). Mantém-se a mesma quantidade de atuação policial, mas a qualidade de atuação se restringiria a ocorrências menos desafiadoras do ponto de vista operacional, ao menos em regra.


  1. Discussão


A utilização das câmeras corporais em policiais tem sido levantada como uma verdadeira panaceia para a resolução dos problemas de abuso da força policial por parte das forças de segurança no Brasil, ignorando demais intervenções muito menos custosas e que não apresentam diversos problemas jurídicos – inclusive de ordem constitucional.


Como já discutido em certos artigos publicados nos Estados Unidos, a intimidade e a vida privada dos policiais não pode simplesmente ser esquecida, tratando esses agentes como indivíduos subalternos e desmerecedores de direitos constitucionais. Os direitos individuais – de que são exemplo os direitos de personalidade – também devem ser usufruídos pelos policiais.


A opção política demonstrada até agora pelos gestores públicos (e, a nosso ver, infelizmente e de forma inconstitucional também pelo Poder Judiciário) foi a de gravação ininterrupta e contínua, ou seja, capturando toda e qualquer interação ou conversa levada a efeito pelo agente de segurança pública.


A gravação não seria interrompida sequer no caso de ida ao banheiro para realização de necessidades fisiológicas, agredindo frontalmente a dignidade do policial, protegida pelo art. 1º, III, da Constituição Federal.


Adicionalmente, considerando que os plantões policiais variam entre 12h e 24h, sendo a maioria desse período dentro de viaturas e sem qualquer tipo de interação com o público, é comum que os agentes conversem sobre assuntos pessoais, familiares e íntimos, e mesmo sobre perseguições e assédios morais sofridos dentro das corporações. Ou mesmo que se trate de uma crítica válida e dentro dos ditames da hierarquia militar. Qual é a garantia que o agente policial terá de que essas gravações não serão acessadas por uma pessoa – seu superior, por exemplo – e que este, ainda que informalmente, resolva puni-lo ao descobrir seu conteúdo?


Em caso de adoção das câmeras corporais, mais razoável seria a gravação descontínua, apenas no caso de interações com cidadãos ou intervenções policiais de fato. Somente nesses casos seria exigível e esperado que a atuação policial fosse integralmente gravada, cabendo aos policiais – após treinamento ofertado pelas corporações – iniciar a captura de som e imagem por procedimento simples. Essa realidade já está presente em diversas unidades policiais ao redor do mundo, e resolve inúmeras questões de ordem legal que podem surgir quando se compara com a gravação de modo ininterrupto.


Além disso, a gravação descontínua também reduz o custo financeiro da adoção das câmeras – fato que é absolutamente ignorado nas discussões a respeito. Os estudos citados anteriormente calcularam os custos de variadas formas, que trazemos abaixo (em dólares americanos):


  • Custo por 100 mil habitantes: 297.900 a 785.400 dólares por ano;

  • Custo por câmera: 1221 a 3219 dólares por ano.


Considerando o fato de que no estudo em questão foram adquiridas 10.000 câmeras, então temos um custo aproximado anual entre US$ 12.210.000 (doze milhões, duzentos e dez mil dólares) e US$ 32.190.000 (trinta e dois milhões, cento e noventa mil dólares).


Fazendo uma conversão com o dólar atual, em torno de seis reais por dólar, chegamos ao custo anual, em real, de R$ 73.260.000 (setenta e três milhões, duzentos e sessenta mil reais) a R$ 193.140.000 (cento e noventa e três milhões, cento e quarenta mil reais), sendo a média entre esses valores de aproximadamente 133 milhões de reais anuais. Esse valor englobaria o custo de aquisição das câmeras, treinamento de pessoal, infraestrutura de tecnologia da informação e licenciamento de softwares necessários para a operacionalização dos sistemas.

Cabe ressaltar que somente a Polícia Militar de São Paulo tem cerca de 80 mil homens. Ainda que se considere que apenas um quarto dessa força utilize as câmeras de forma concomitante, isso aumentaria o custo anual para aproximadamente 266 milhões de reais anuais. Isso representa quase o mesmo gasto anual da Polícia Militar de São Paulo para o custeio administrativo em geral, e mais de cinco vezes o gasto com formação e capacitação da polícia militar.


Neste último caso, pergunta-se: será que não seria mais adequado investir três ou quatro vezes mais com formação e capacitação policial do que adquirir câmeras corporais cuja eficácia sequer é unânime nos artigos já publicados? 


A discussão sobre a utilização de câmeras corporais por policial pode ser feita de diversos modos, por diversos prismas e premissas. Entretanto, a premissa mínima e obrigatória deveria ser a comprovação de sua eficácia para reduzir a letalidade ou a violência policial, entre outros desfechos desejáveis. Mas sequer essas hipóteses foram comprovadas nos estudos até o momento, limitando-os a dizer que (i) são necessários mais estudos sobre o tema e/ou (ii) os resultados são inconclusivos.


De fato, toda a discussão deveria se voltar para, primeiramente, a investigação a respeito da real eficácia desse instrumento para determinado fim. Apenas quando superado esse ponto a discussão deveria ocorrer a respeito da implementação (ou não) dos instrumentos, considerando todos os fatores envolvidos, como custos (financeiro e de oportunidade) e demais elementos – como os jurídicos.


Apenas para exemplificar possível óbice jurídico intransponível, vamos discutir a possível responsabilização criminal do policial que se utiliza de força letal de forma ilegal ou desproporcional contra um cidadão.


Vamos supor que um policial militar efetue disparos de arma de fogo contra uma vítima indefesa, cometendo em tese o crime de homicídio. Sua câmera corporal (vamos dizer que de gravação contínua) tenha capturado todo o evento.


O policial será obrigado a devolver o equipamento ao final do plantão para a corporação?

A resposta é não, sob pena de ser obrigado a produzir provas contra si próprio, violando frontalmente o princípio do nemo tenetur se detegere (impossibilidade de que o acusado seja forçado a produzir provas contra si), de índole constitucional e convencional.


Por óbvio, entendemos que seria possível a imposição de sanções administrativas, disciplinares, mas o fato é que, neste exemplo, sequer a câmera que gravou o fato criminoso, caso não haja concordância do policial que a detém, poderá ser utilizada contra ele, retirando totalmente qualquer utilidade prática do instrumento. Afinal, de que serviria?

Existe, ainda, a necessidade de avaliação qualitativa a respeito da utilização de câmeras corporais por fatores como percepção dos policiais e da sociedade em virtude da implementação dos instrumentos. Como indivíduos que serão responsáveis diretos pela eficácia das câmeras, os policiais precisam ser previamente ouvidos, até mesmo para aumentar a adesão à política pública, caso seja de fato implementada.


O artigo em questão enfocou em determinadas regiões do Estado de São Paulo. Será que os resultados seriam semelhantes em outros locais do mesmo Estado, ou em outra unidade da federação com cultura policial militar distinta? Como estudo observacional, a escolha dos locais de intervenção sequer ocorreu por determinação dos autores, sendo necessário também perquirir se a opção pelas unidades policiais se deu aleatoriamente ou em virtude de serem locais onde a ocorrência das variáveis observadas pelo estudo (MDIP e LCDIP, entre outras) eram maiores. Neste último caso, é ainda imprescindível que ocorra o isolamento da intervenção frente a outros elementos que podem ter interferido nos resultados analisados. Afinal, houve uma política pública de segurança mais ampla, da qual fez parte a instalação de câmeras corporais, ou somente houve a instalação de câmeras corporais? Essa discussão é fundamental e não parece ter sido levada em conta no estudo em questão.


Frisamos, novamente, a importância do estudo nesse ponto, considerando que pode ser impraticável realizar estudo científico amplo em todo território nacional. Alertamos apenas as limitações que o artigo apresenta – muitas vezes ignoradas não pelos autores, necessariamente, mas sim pelos interessados em corroborar seu viés de confirmação.

Quanto ao aspecto temporal, o artigo observou a intervenção durante catorze (14) meses. Houve acompanhamento posterior? Os achados foram confirmados em análises nos meses ou períodos seguintes? Considerando a premissa básica do estudo – que as MDIPs são reduzidas pela implementação de câmeras corporais –, é esperado que o padrão se mantenha, mantidas também as condições do estudo.


Há outras análises importantes a respeito do artigo que fogem do âmbito e do escopo deste trabalho, mas um aspecto citado, porém não explorado no estudo, foi a resistência interna demonstrada pelos policiais do Rio de Janeiro quando da tentativa de implementação de câmeras policiais. Essa resistência foi verificada nos policiais militares dos grupos controle e de intervenção? Se sim, como ela foi superada ou atenuada? A resistência pode afetar a adesão ao estudo – modificando o comportamento do grupo de intervenção –, ainda que os policiais militares concordem com a utilização da câmera? São aspectos importantes a ser considerados, e que não foram explorados pelo artigo.


  1. Conclusão


O objetivo deste trabalho foi jogar luz à discussão a respeito do tema de câmeras corporais sob outros prismas, que normalmente não são levados em consideração, ao menos na literatura brasileira a respeito. Tendo como ponto de partida o artigo produzido no âmbito da CCAS da FGV, tentamos demonstrar que existem inúmeros fatores não esclarecidos a respeito do tema, e que merecem estudos mais aprofundados, a fim de termos dados conclusivos a respeito da eficácia da utilização dos referidos instrumentos na fiscalização e no controle da atuação policial.


A maioria dos estudos a respeito da eficácia da utilização das câmeras corporais é inconclusiva, quando se tem em vista desfechos como redução da letalidade policial e outros afins. Com efeito, não se pode querer seriamente planejar políticas públicas com custos milionários apenas com base em conjecturas. É necessário, primeiro, saber, de fato, se a premissa básica está estabelecida: se, ao menos, os instrumentos são adequados para tal fim.


O Nisp estará sempre buscando dados e bases científicas para a formulação, o planejamento e a implementação de políticas públicas em segurança pública, desde que haja elementos mínimos suficientes. Nossa posição é de que, por enquanto, a utilização de câmeras corporais por policiais passa por escolhas meramente políticas, potencialmente de baixa eficácia, desconsiderando o atual quadro científico a respeito, com imensas incertezas.


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