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Ausência paterna, paternidade severa e criminalidade juvenil: implicações para políticas de segurança pública. Ou: como pais ruins podem criar criminosos juvenis.

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    Rafael Erthal
  • há 2 horas
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Rafael Erthal - Coordenador do NISP


Resumo

A relação entre a estrutura familiar e os desfechos comportamentais de crianças e adolescentes tem sido objeto de ampla atenção nas ciências sociais, na criminologia e, mais recentemente, na área de segurança pública. Entre os fatores familiares, a ausência paterna e a paternidade severa despontam como elementos de alta relevância para compreender os caminhos que levam jovens à delinquência e ao comportamento antissocial. Embora a ausência do pai frequentemente receba destaque, estudos recentes revelam que não basta apenas considerar a presença física — a qualidade da relação afetiva entre pai e filho é fator determinante. Este artigo discute os principais achados de três estudos sobre tema, destacando suas implicações para a formulação de políticas públicas com enfoque em prevenir a criminalidade juvenil e fortalecer a responsabilidade parental, principalmente da figura paterna.

 

Introdução

Os laços afetivos criados ao longo da vida de uma pessoa podem não ser determinísticos, mas moldam seu caráter. Se a estrutura espacial de uma cidade pode afetar o comportamento criminoso de um sujeito, como demonstra a Ecologia Criminal[1], parece bastante evidente que as relações pessoais – principalmente as familiares – são fatores altamente importantes na construção da personalidade.

Na natureza, os genitores, e principalmente as fêmeas na maioria das espécies, são os responsáveis por cuidar e desenvolver a prole, auxiliando nas tarefas mais básicas para a sobrevivência animal. Nos mamíferos, chegou-se ao ápice da dependência da prole, pois sem a mãe, fornecedora de um dos mais completos alimentos existentes – o leite –, os filhotes perecem rapidamente. O pináculo desta importância é observado no caso dos marsupiais, em que o desenvolvimento fora do ventre é realizado ainda dentro de uma estrutura do corpo da mãe.

Do ponto de vista da Evolução, a existência da família vem ao encontro da necessidade de se garantir a sobrevivência da espécie animal, cujo único objetivo do ponto de vista biológico é o de se reproduzir e de repassar seus genes para a geração posterior.

Ao longo da história humana, o cuidado dos filhos, na maioria das organizações sociais, tem sido de responsabilidade de mulheres ou de pessoas mais velhas, neste caso pela vantagem adicional de lhes passar os ensinamentos culturais do grupo em questão. A educação da prole não era de exclusividade de uma única família, mas sim de todo o conjunto social. O núcleo familiar, apesar de inegavelmente importante, não tinha tanta relevância como atualmente, considerando que o cuidado e a educação dos filhos eram feitos pela coletividade.

A sociedade moderna se desenvolveu no sentido de relegar aos núcleos familiares o cuidado com os filhos, com pouca participação do grupo em que inseridos, ao menos quando se compara, proporcionalmente, com a responsabilidade da mãe e do pai. Se antes os indivíduos senis da comunidade e as mulheres eram responsáveis, coletivamente, pela criação dos filhos, essa tarefa ficou inegavelmente concentrada no núcleo familiar.

Desse modo, torna-se ainda mais crucial o papel dos pais como referência para seus filhos. Se antes existia a possibilidade de a criança escolher uma ou outra pessoa de referência – a que fosse mais sábia; a que demonstrasse mais afeto etc. –, atualmente a criança é “obrigada” a ter os pais como referência, ao menos na maioria dos casos.

Obviamente, não se ignora a realidade de que muitas crianças têm como referenciais irmãos mais velhos, tios e tias, avós e até mesmo pessoas de fora da família, mas o fato é que hoje, na maioria dos casos, os pais têm muito mais relevância na criação de seus filhos do que nas sociedades antigas. Se isso é verdade, então a ausência de qualquer um dos pais tem consequências dramáticas.


A importância da figura paterna – especialmente para filhos homens

A ausência paterna tem sido amplamente documentada como um fator de risco para uma série de problemas sociais e individuais, incluindo agressão, delinquência juvenil, dificuldades escolares, problemas de saúde mental e precariedade econômica. Segundo McLanahan, Tach e Schneider (2013), a ausência do pai afeta especialmente a conduta social de crianças e adolescentes, fenômeno que inclui a delinquência e o comportamento antissocial, com efeitos particularmente robustos em domínios como educação e saúde mental. A abrangência internacional desses dados — com estudos nos Estados Unidos, Reino Unido, África do Sul, Alemanha e outros países — reforça que se trata de um fenômeno transversal a contextos culturais e socioeconômicos diversos.

No entanto, a qualidade do vínculo afetivo se destaca como variável crítica. Simmons et al. (2018) apontam que a paternidade severa — marcada por hostilidade e baixa afetividade — pode ter efeitos tão ou mais deletérios que a ausência paterna em si, especialmente em termos de envolvimento em crimes e uso de substâncias ilícitas. Esse estudo, focado em jovens infratores norte-americanos, mostrou que aqueles sob paternidade severa apresentaram maior variedade de delitos do que jovens sem contato algum com os pais, reforçando a ideia de que não basta apenas “ter um pai presente”, mas sim garantir que essa presença seja positiva, afetiva e acolhedora.

Kim e Glassgow (2018), por sua vez, analisaram o efeito da presença paterna sobre a agressividade infantil em bairros desfavorecidos de Chicago. Seus achados revelam que fatores contextuais do bairro e do domicílio influenciam fortemente o comportamento agressivo, às vezes mais do que a simples presença do pai, mas também destacam que a ausência paterna tem impactos negativos.

Apesar de muitos estudos investigarem a relação entre ausência de paternidade ou paternidade abusiva e aumento da criminalidade juvenil, a maior parte deles teve dificuldade em isolar outras variáveis, de modo que o aspecto causal do fenômeno não era bem estabelecido. O trunfo do estudo de McLanahan e colaboradores foi justamente o de conseguir isolar essa variável (ausência paterna, ou sua presença de maneira abusiva), indicando relação causal com o fenômeno da criminalidade juvenil.

Outro aspecto interessante dos estudos foi o de apontar maior responsabilidade paterna no fenômeno da criminalidade juvenil. Nesse sentido, mesmo controlando pela variável materna – ou seja, mesmo quando há ausência de mãe, ou esta é abusiva –, verifica-se que o efeito deletério de pais abusivos é mais pronunciado. Em outras palavras: pais abusivos são mais prejudiciais aos filhos (especialmente filhos homens) do que mães abusivas o são.

 

Impactos da paternidade na segurança pública

Do ponto de vista da segurança pública, esses achados têm implicações diretas para o desenho de políticas preventivas. Primeiro, sugerem que programas sociais com enfoque exclusivo na presença física do pai podem ser insuficientes. Há necessidade de políticas que fomentem a qualidade do relacionamento entre a figura paterna e os filhos – principalmente filhos homens –, promovendo vínculos positivos e afetivos. Segundo, apontam para a importância da responsabilidade parental, inclusive com intervenções voltadas para pais severos ou negligentes. Finalmente, reforçam o papel central das condições socioeconômicas e contextuais, indicando que ações de fortalecimento comunitário são fundamentais.

Investimentos em programas de paternidade responsável, mediação familiar, terapia familiar e educação emocional para pais são estratégias com potencial preventivo significativo. Além disso, iniciativas de apoio econômico e social para famílias monoparentais, sobretudo em comunidades vulneráveis, podem reduzir os impactos negativos da ausência paterna.

As famílias monoparentais apresentam sensível dificuldade, justamente porque a maioria delas é composta pela mãe e por seus filhos – muitas das quais compostas, inclusive, por filhos de diferentes pais, que foram ou ainda são ausentes ou péssimas figuras de referência.

Sem retirar qualquer responsabilidade das figuras paternas, o desafio nesses casos é formular políticas também voltadas para as mães, para que tenham maior discernimento na escolha de seus parceiros, considerando a situação vulnerável em que se encontram seus filhos. A ideia é simplesmente de conferir a maior proteção possível às crianças e aos adolescentes, sem impor qualquer estereótipo ao homem ou à mulher, considerando que o número de mães solo é aproximadamente seis vezes maior do que o número de pais na mesma condição, segundo dados do IBGE[2].

Um ponto interessante de discussão é a possível relação causal existente entre políticas públicas de bem-estar social e sua implicação na produção de famílias monoparentais, que por sua vez podem gerar condições propícias para o aumento da criminalidade juvenil. Thomas Sowell[3] aponta possível correlação causal entre o início dos programas de bem-estar social nos Estados Unidos e o crescimento exponencial de famílias negras monoparentais – mais uma vez, em sua maioria compostas por mães e filhos. Essas condições, segundo o autor, criaram o caldo necessário para o aumento do encarceramento de negros, especialmente na década de 1960, justamente quando os programas de welfare state iniciaram nos EUA. Os gráficos abaixo demonstram, ao menos parcialmente, essa correlação, com destaque para os anos de 1960 e 1980.

Conclusão

A relação entre ausência paterna, paternidade severa e criminalidade juvenil é complexa, multifacetada e exige respostas igualmente sofisticadas do poder público. As evidências apresentadas pelos estudos de Kim e Glassgow (2018), McLanahan et al. (2013) e Simmons et al. (2018) apontam que a mera presença física do pai não é suficiente para prevenir comportamentos delinquentes — é fundamental investir na qualidade dos vínculos familiares e no fortalecimento da responsabilidade parental: pais abusivos são piores do que pais ausentes; e pais afetivos são melhores do que pais ausentes. Apostar na paternidade responsável é, portanto, investir em segurança pública sustentável e de longo prazo.

 

Estudos citados

KIM, Sage; GLASSGOW, Elizabeth. The differential effect of father presence on child aggression in disadvantaged neighborhoods: A multi-analytic approach. J Hum Behav Soc Environ, v. 28, n. 5, p. 570–587, 2018.

MCLANAHAN, Sara; TACH, Laura; SCHNEIDER, Daniel. The Casual Effects of Father Absence. Annu Rev Sociol, v. 39, p. 399–427, 2013.

SIMMONS, Cortney; STEINBERG, Laurence; FRICK, Paul J.; CAUFFMAN, Elizabeth. The differential influence of absent and harsh fathers on juvenile delinquency. Journal of Adolescence, v. 62, p. 9–17, 2018.


[1] A Ecologia Criminal parte da ideia de que o crime resulta da interação entre pessoas e o ambiente físico-social em que circulam. Seu foco principal é mapear variações espaço-temporais da criminalidade para revelar como atributos de lugares (uso do solo, fluxo de pessoas, desordem) criam oportunidades ou barreiras à ação criminosa.

[2] IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e EstatísticaINSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2022: Resultados gerais da amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2023. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br. Acesso em: 2 maio 2025.

[3] SOWELL, Thomas. Discrimination and Disparities. Revised and enlarged edition. New York: Basic Books, 2019.


 
 

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