top of page

Crimes Patrimoniais no Brasil: Aonde Estamos Falhando?

por Ronney Augusto Matsui Araujo



João, um trabalhador autônomo, teve seu celular furtado por um ciclista enquanto voltava para casa. Em questão de horas, criminosos acessaram suas contas bancárias, realizaram empréstimos em seu nome, resgataram investimentos e transferiram os recursos para comparsas, deixando-o sem patrimônio e com uma dívida exorbitante. Infelizmente, isso não é um caso isolado. No Brasil, desde 2018, houve 360% de aumento dos crimes de estelionato. 1 golpe é praticado a cada 16 segundos. Quase 2 milhões de ocorrências são registradas anualmente no país[1]. Dada a pluralidade de naturezas de registro criminal do gênero fraudes além do estelionato e tendo-se em conta a alta cifra oculta decorrente da perda de confiança nas instituições, é muito provável que o número real de crimes seja infinitamente maior.


Essa situação ilustra uma nova face dos crimes patrimoniais no Brasil, que evoluíram de furtos e roubos tradicionais[2] para sofisticadas fraudes digitais, afetando milhões de famílias em todo o país. Se antes lidávamos com o roubo de dinheiro em espécie, hoje enfrentamos a subtração de identidades e de recursos financeiros angariados por toda a vida, o que se dá no anonimato, por meio da tecnologia.


Essa realidade não afeta apenas indivíduos, mas tem consequências macroeconômicas significativas. Os prejuízos bilionários decorrentes das fraudes criam barreiras ao desenvolvimento, aumentam o chamado "custo Brasil" e afastam investidores. Empresas enfrentam perdas financeiras e reputacionais, aumentam preços ou simplesmente decretam falência, resultando em desemprego e desaceleração econômica. E assim seguimos todos perdendo para o crime e falhando enquanto Estado e sociedade.


Dada a transformação digital potencializada com a pandemia, o crescimento de crimes virtuais é uma tendência mundial, não adstrita ao Brasil. Entretanto, o que está sendo feito de errado? Aonde estamos falhando?


A ausência de uma governança[3] eficaz por parte do poder público é um dos principais obstáculos no enfrentamento às fraudes. Vivemos em um ambiente anárquico e descentralizado, com atuação fragmentada entre diversos atores que não se comunicam adequadamente. Imaginemos um jogo de futebol sem posições definidas, onde cada jogador corre para um lado diferente, sem estratégia ou visão do todo. Todos correndo atrás da bola e tomando-a uns dos outros, sendo do mesmo time. É exatamente assim que estamos atuando: com retrabalho, mediante ações isoladas e desarticuladas, falta de compartilhamento de informações e ausência de produção de conhecimento a partir dos dados disponíveis.


Quem está na ponta, na investigação criminal, enfrentando diariamente os crimes patrimoniais relacionados às fraudes, sente-se perdido em um oceano de ocorrências, sem orientação estratégica para enfrentar o macroproblema. Não sabemos sequer quantificar com precisão as modalidades de fraudes que devem ser combatidas, não fazemos conexões entre as ocorrências e desconhecemos se outras unidades estão investigando as mesmas pessoas. Não há, ainda, big data ou inteligência artificial institucional para processar e qualificar os ricos dados disponíveis.


Os atores precisam que as ações sejam orientadas para enfrentar o problema de forma eficiente, desde o nível operacional até o estratégico e político. Claro que tem sido cada vez mais comuns operações policiais com diversos presos por tais crimes, inclusive por lavagem de dinheiro e crime organizado. Estamos fazendo algo, mas podemos ser muito mais assertivos, ganhando tempo precioso contra o escalonamento da violência patrimonial.

A necessidade de uma nova abordagem é evidente. A governança surge como solução para coordenar e integrar esforços.  Diretrizes claras e ações estruturantes devem ser traçadas, fazendo com que todos atuem de modo virtuoso em uma mesma direção, fazendo o melhor uso dos escassos recursos públicos.


Essas ações devem ser articuladas, coordenadas e integradas, abrangendo diversos eixos de enfrentamento, como prevenção, repressão, inteligência, aprimoramento legislativo e cooperação internacional. Medidas concretas incluem a capacitação contínua dos agentes, investimentos em tecnologia, compartilhamento de informações entre órgãos e parcerias com o setor privado. É seguir a lógica de enfrentar o crime de modo holístico, nas linhas do que definiu Gary Becker[4] com a economia do crime, ao considerar o criminoso um ser racional que avalia custos e benefícios do crime. Assim, para coibir a ação do criminoso, o Estado deve agir em diversas frentes: aumentar a percepção de risco do autor, elucidar crimes, buscar decisões contemporâneas e com punições qualificadas, diminuir as oportunidades de execução do crime, reduzir as possibilidades de o autor auferir o proveito ilícito, além de ofertar condições de empregabilidade e renda e investir na melhoria das chamadas travas morais (família, cultura, educação, religião, etc.).


É fácil? De modo algum. Mas não é impossível. Com uma estratégia bem delineada, podemos reduzir o Custo Brasil, estimular o desenvolvimento econômico, atrair investimentos e, ainda, restaurar a confiança nas instituições.



De todas as unidades da federação, o Distrito Federal é a que possui a maior taxa de estelionato em razão da população: 1.788,4 casos por 100.000 habitantes em 2023, segundo as secretarias de segurança pública dos estados[5].


Apesar de possuir a estatística criminal mais preocupante nacionalmente, é o DF quem provavelmente possui as melhores condições para enfrentamento do fenômeno criminoso. Primeiro, por ter boas condições de capacidade estatal e institucional, com órgãos de segurança pública bem treinados e aparelhados, liderados por uma Secretaria de Segurança Pública que busca uma atuação integral por meio do programa DF Mais Seguro[6]. Além disso, reúne condições que em tese reduzem a complexidade de atuação: congrega competências municipais e estaduais e possui pequeno território. Por fim, dentro do DF são sediados muitos dos principais atores do complexo cenário de enfrentamento como o MJSP, Polícia Federal, Receita Federal, ANATEL, BACEN, COAF, etc.


Isso confere ao Distrito Federal um desafio, mas também uma oportunidade. Desafio de mudar a realidade de insegurança dos crimes contra o patrimônio, mas a fantástica oportunidade de aumentar a confiança no Estado, criar um ambiente mais propício ao desenvolvimento, ter uma ação de vanguarda nacional e, principalmente, melhorar a qualidade de vida das pessoas, cujo patrimônio familiar tem sido dilapidado por criminosos.

Atuar no enfrentamento aos crimes patrimoniais é desafiador e exige dedicação, mas, é imprescindível a prioridade política e institucional. Reunindo esforços e saindo de uma atuação atomizada e sobreposta é possível fazer a diferença na vida das milhões de pessoas afetadas direta ou indiretamente pelas fraudes, contribuindo para um país mais justo e seguro. O Estado precisa estender a mão à sociedade e unir forças contra o crime. É hora de assumirmos nossa responsabilidade e liderarmos a mudança que desejamos ver.


 

Ronney Augusto Matsui Araujo

Mestre em Governança e Desenvolvimento pela Fundação Escola Nacional de Administração Pública (Enap). Desde 2010 é Delegado de Polícia Civil do Distrito Federal. Entre 2020 e 2021 foi o Secretário Adjunto da Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP. De 2021 a 2022 foi o Subchefe-Adjunto de Segurança e Defesa na Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais - SAG/CC/PR. Desde abril de 2024 exerce suas funções na 35a Delegacia, Sobradinho II.


[1] Saímos de 426799 ocorrências de estelionato em 2018 para 1.965.353 em 2023, segundo o ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024.

[2] Os roubos em geral caíram de 1.506.151 em 2018 para 870.320 em 2023, segundo a mesma publicação.

[3] Segundo o art. 2º, I do Decreto nº 9.203/2017: “governança pública - conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade”

[4] Gary Stanley Becker foi um economista estadunidense. Professor na Universidade de Chicago, foi laureado com o Prémio de Ciências Económicas de 1992, por ter estendido os domínios da análise microeconômica para comportamento e interação humana.

[5] O Brasil como um todo possui taxa de 967,8 crimes por 100.000 habitantes (FBSP, 2024).

[6] É importante destacar que o eixo “Cidadão Mais Seguro – Segurança Integral” busca congregar “ações  voltadas às variadas formas de crimes contra a pessoa e o patrimônio, desde as modalidades de crimes  favorecidas pelo uso da internet e meios eletrônicos ao enfrentamento qualificado aos crimes violentos letais intencionais” (...). Disponível em: https://www.ssp.df.gov.br/df-mais-seguro/ 

bottom of page