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ADPF 635 - Entre as tiranias dos "especialistas de escritório" e a Fábula do Sapo e do Escorpião

  • Foto do escritor: Rafael Erthal
    Rafael Erthal
  • 25 de abr.
  • 8 min de leitura

Por Rafael Erthal


Imagine que você é um traficante de drogas de uma favela carioca. O que você sugeriria ao Estado brasileiro para que seu negócio fosse mais próspero?

Primeiramente, para promover seu empreendimento, é necessário que ele tenha liberdade e paz para funcionar. Nada de interferência das forças policiais no tráfico de drogas, nas extorsões praticadas contra os comerciantes locais e contra a população local, nem operações policiais para dificultar a presença dos consumidores de drogas na região.

Mas é necessário também que isso ocorra durante período considerável, afinal de contas de nada adianta ter paz para funcionar durante apenas um dia. É preciso que a pax traficantia seja dilatada.

Uma ideia excelente seria se utilizar de um fundamento razoável, como a existência de uma pandemia em curso no país. O que você quer é que as operações policiais cessem; enfim, que virtualmente não haja ação estatal para atrapalhar o bom andamento dos negócios. Sua ideia é justamente substituir o poder estatal pelo poder criminoso.

Parece uma boa justificativa: utilizar-se de emergência de saúde pública como fachada para supostamente proteger a população já extremamente vulnerável, independentemente se haverá respeito a lockdowns ou a qualquer restrição de locomoção das pessoas a fim de se reduzir a probabilidade de contágio da doença pandêmica. Isso não importa, até porque quem decreta ou não lockdown é você, o “Dono do Morro”, e não a autoridade do Estado brasileiro.

Mas como você – um simples traficante de drogas que tortura e escraviza a população local – poderia provocar os órgãos públicos competentes (ou incompetentes) para que tal decisão fosse tomada? Como produzir uma completa omissão estatal para que você prospere nos negócios?

O ideal – como dito anteriormente – é sempre se utilizar de argumentos superficialmente razoáveis, como a proteção dos direitos humanos, da população vulnerável e até mesmo dos próprios policiais, que se arriscam diariamente em perigosas operações no combate à traficância. Colocar “dignidade da pessoa humana” como fundamento parece sempre funcionar, até porque quase ninguém sabe exatamente o que signifique esse conceito[1].

Sabendo de antemão dos argumentos que seriam utilizados, como acionar os órgãos competentes?

Bom, é possível instrumentalizar um partido político com representação no Congresso Nacional[2]. Qualquer um deles. Mesmo que lhe falte a representatividade adequada. Não interessa. Se não se ganha na urna, no voto popular, então que se ganhe na força (judicial).

O meio escolhido é a arguição de descumprimento de preceito fundamental[3]. Uma ação que existe lá no texto constitucional, mas que é utilizada sem qualquer cuidado – ou seja, de forma absolutamente casuística. Normalmente quando alguém está infeliz com alguma política pública ou meramente discorde dela. A vantagem é que essa ação cai direto no Supremo Tribunal Federal[4], aquele que supostamente deveria proteger o texto constitucional. Logo, não há recurso contra a decisão.

Temos o agente e o meio. Mas como garantir o sucesso da empreitada? Ora, parece que a lei que regula a tramitação da ação judicial em questão (vamos chamá-la de ADPF, e vamos numerá-la como 635[5]), permite que outros agentes interfiram no processo, servindo como “auxiliares” do Tribunal. Eles são chamados de “amigos da corte”[6].

A ideia, em tese, é de “aumentar a representatividade da sociedade” nos Tribunais Superiores. Mas na verdade ninguém liga para isso. O importante é justamente conferir apenas “o ar democrático” da decisão. Se ela é democrática de fato ou não; se os “amigos da corte” têm verdadeiramente os argumentos ouvidos: nada disso importa. O que unicamente tem relevo é a estética da coisa. A aparência é que conta.

Na verdade, as “amizades da corte” são cuidadosamente escolhidas para “representar” o que se quer previamente escutar. Aqui é puramente anticiência mesmo[7]: primeiro escolhe-se, a dedo, determinado desfecho; depois opta-se por alguma teoria (ou amigo da corte) para justificar a decisão. Vamos explorar o que gosto de chamar de “método jurídico anticientífico”. Funciona assim: você toma uma decisão qualquer, optando por decidir de alguma forma ou algum modo; e aí depois arruma algum tipo de teoria, fundamento ou autor que justifique a sua decisão.

Os “amigos da corte” também são os seus. Afinal de contas, eles – os amigos –, principalmente os que vivem sob o jugo do tráfico, não têm opção e o traficante dono do morro tem “consciência social”, como diria o finado Matias[8]. O CEO[9] do Morro não gosta muito do livre mercado de ideias, sabem como é? A consciência social vai até quando e onde os amigos da comunidade concordem com você. Se eles não concordarem, eles viram inimigos da comunidade (e claro que também inimigos da corte). Quem irá ouvi-los? Apenas, quem sabe, o micro-ondas.

Os “inimigos da corte” oficiais, por outro lado, são sempre os mesmos: agentes públicos tachados de “fascistas” e “violentos”. Quanto mais instrumentalização da linguagem para dificultar a ação do Estado (e, principalmente, policial), melhor. Podemos nos utilizar daquela batida e conhecida narrativa, mas que sempre cola: que os policiais seriam racistas, mesmo a maior parte deles sendo composta de pretos e pardos – e também oriunda de classes menos abastadas.

Não importa que os ditos policiais “fascistas” arrisquem diariamente suas vidas para defender pessoas que sequer conhecem (e que muitas vezes os odeiam). Não importa que a maior parte dos tiroteios e suas vítimas sejam produzidas por guerras entre facções criminosas. O que importa é insistir na narrativa de que o culpado pelas mortes em intervenções policiais é dela - da própria polícia.

Confesso que às vezes é até difícil acreditar que alguém compre essa ideia para facilitar sua vida, traficante. Mas o fato é que isso está funcionando. Nas faculdades Brasil afora, em ONGs que supostamente defendem direitos humanos, no Judiciário, no MP, na Defensoria Pública, no Congresso Nacional e até na polícia: há muita gente que compre essa ideia estapafúrdia e que no limite beneficia apenas uma pessoa: você, caro Dono do Morro. Como diz o velho ditado: “Em time que está ganhando, não se mexe”.

Parece que as coisas estão indo bem para você, traficante. Mas e como consolidar, sedimentar todas essas ideias de forma que a ADPF 635 possa cuidar de tudo isso e mais um pouco? Como é que vamos tentar colar a ideia de que uma ação judicial pode controlar a ação da polícia, ou seja, interferir diretamente na segurança pública, como se política pública fosse?

Olha, entendo que pode ser difícil conseguir isso tudo na prática. Seria bom demais para ser verdade. Mas existe um tal de “processo estrutural” que faz mais ou menos isso pra gente. É só direcioná-lo para fazer o que a gente quiser.

Esse processo estrutural foi pensado para dar mais “legitimidade” às decisões judiciais (lembra dos “amigos da corte”? Pois é, o processo estrutural funciona como se fosse um amicus curiae anabolizado). Você pode fazer quase tudo dentro desse tal de “processo estrutural”: definir políticas públicas, proibir atos administrativos, celebrar acordos, negociar a aplicação da lei, moldar o entendimento judicial para tal e qual desfecho – enfim, o céu é o limite. É bom demais pra ser verdade. Até porque nada disso está previsto em lei, muito menos na Constituição. O negócio é tão absurdo que você acredita que, da última vez, proibiram a utilização de helicópteros nas operações policiais? Nem você pensaria em ideia tão genial e tão inacreditável ao mesmo tempo.

Diante de tudo que trouxe, acredito que você conseguiu o que queria, certo? Você conseguiu com uma única ação judicial, sem possibilidade recurso para instância superior, que dezenas de “representantes da democracia” – muitos dos quais subjugados ou ameaçados diretamente – concordassem integralmente com você, e que eles fossem ouvidos e sua opinião considerada.

Tudo isso com fundamento na Pandemia, que ocorreu lá em 2020. A Pandemia já acabou faz tempo, mas os experts realmente acham que estão protegendo a comunidade de você. É realmente incrível o que você, traficante de drogas, conseguiu. Tudo isso com aumento do seu território, do seu poder, da sua capacidade de exterminar vidas[10]. O seu arsenal de armas e munições está maior do que nunca, protegido atualmente por inúmeras barricadas construídas durante esse período em que houve um verdadeiro “cessar-fogo” em seu favor – sem cumprir absolutamente nenhuma obrigação em troca. Você está de parabéns.

O único problema, meu caro, é alguém falar o óbvio, como naquela fábula do sapo e do escorpião[11]. Alguém pode simplesmente dizer: “Olha, mas é da natureza do traficante de drogas desrespeitar qualquer lei ou decisão judicial, será que desta vez ele irá seguir ordens judiciais?”


- Bem, pode até ser. Mas até lá, meu "cumpadi", eu vou ferroar muita gente!


[1] Apesar de a dignidade da pessoa humana ser fundamento constitucional expresso (art. 1º, III, da Constituição Federal – CF), seu conceito é demasiadamente alargado pela doutrina e pela jurisprudência, de modo que é utilizado sem rigor conceitual algum. Normalmente, é utilizado como verdadeiro “super trunfo” em decisões judiciais: se o julgador não tem mais nenhum fundamento razoável e objetivo, usa-se essa cartada.

[2] Os partidos políticos com representação no Congresso Nacional podem ajuizar ações diretas de (in)constitucionalidade, de acordo com o art. 103, “caput”, VIII da CF. Assim, qualquer partido nanico, mesmo que tenha apenas um único parlamentar, pode obstar por completo o processo legislativo (ou desafiar os efeitos de uma lei aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente). É um poder imenso para um partido tão pouco representativo.

[3] A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é uma ação para desafiar normas primárias e atos oriundos do poder público, e é regulada pela Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999. É usada quando atos ou normas violam “preceitos fundamentais” da Constituição. O grande problema é que nem doutrina nem jurisprudência – muito menos a Constituição – dizem o que seriam esses tais “preceitos fundamentais”, de modo que há imenso casuísmo no que seja (ou não) violação a preceito fundamental, gerando insegurança jurídica.

[4] O STF tem competência originária para processar e julgar a ADPF, nos termos do art. 102, § 1º, CF.

[5] A ADPF 635 está em curso no Supremo Tribunal Federal, e tem como relator o ministro Edson Fachin. Já houve diversas decisões no bojo do processo, mas, em síntese, a ação estipulou inúmeras obrigações para que se realizassem operações policiais – tantas que, na prática, acabam por esvaziar por completo sua utilidade, ou mesmo por proibi-las em determinados moldes operacionais.

[6] O amicus curiae é inovação da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, com previsão em seu art. 7º, § 2º. Nos termos desse dispositivo, o relator do caso poderá, “considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades”. Esses “outros órgãos ou entidades” são os “amigos da corte”. Veja-se que não há nenhum critério objetivo para inclusão ou oitiva desses interessados no processo. Nem mesmo a decisão é recorrível. O relator pode, portanto, simplesmente aceitar alguns e rejeitar outros. Outro problema é o que seja a “representatividade dos postulantes”: é aí que ONGs se aproveitam para agir como se fossem representantes legítimos de toda uma comunidade altamente heterogênea.

[7] De acordo com Karl Popper, uma teoria é científica se, e somente se, ela é passível de ser contraditada objetivamente, com fatos. A partir do momento em que existe uma “teoria” que decide o desfecho antes mesmo da observação, ela pode ser tudo, menos científica.

[8] Alusão à fala do personagem André Matias, do filme Tropa de Elite 1, interpretado pelo ator André Ramiro, em uma das icônicas cenas do filme.

[9] Do inglês Chief Executive Officer. É o diretor-presidente de uma empresa.

[10] O próprio Conselho Nacional de Justiça produziu relatório apontando o avanço das facções criminosas nos territórios ocupados durante a vigência da ADPF – indicando possível relação causal. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/04/relatorio-gt-cnj-adpf-635.pdf. Acesso em 2 de abril de 2025.

[11] A fábula do sapo e do escorpião narra como um escorpião pede ajuda a um sapo para atravessar um rio e, apesar da promessa de não o ferroar, o escorpião o faz durante a travessia, justificando que esta é sua natureza - de ferroar.


Crédito da foto de capa: gfather politics.


 
 

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