por Rafael Erthal
A reincidência criminosa, em termos leigos, ocorre quando um indivíduo, já tendo praticado um crime, comete nova infração. Considerando que esse indivíduo traz mais preocupação para a sociedade e para o Estado, o Código Penal e a legislação penal especial têm algumas previsões para tratar com maior severidade os reincidentes.
Entretanto, conforme será demonstrado, o conceito de reincidência legal, previsto no Código Penal, torna possível o cometimento de diversos delitos antes mesmo que o agente seja considerado tecnicamente reincidente. Por esse motivo, o criminoso ainda pode ser “primário”, mesmo já tendo cometido dezenas de delitos anteriormente.
O objetivo deste texto, amparado em estudo científico observacional realizado na Suécia, entre outros elementos, é o de demonstrar as falhas na legislação vigente quanto ao tratamento da reincidência criminal, bem como expor, com o referido estudo, a necessidade de se tratar com maior severidade o fenômeno da reiteração delitiva.
A reincidência é prevista no art. 63 do Código Penal (CP) e no art. 7º da Lei das Contravenções Penais (LCP), que dispõem:
Código Penal
Art. 63 - Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.
Lei das Contravenções Penais
Art. 7º Verifica-se a reincidência quando o agente pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no estrangeiro, por qualquer crime, ou, no Brasil, por motivo de contravenção.
Importante previsão existe no art. 64, I, do CP, cuja redação é a seguinte:
Art. 64 - Para efeito de reincidência:
I - não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação;
Como se vê, para que um agente seja considerado “reincidente”, são necessárias as seguintes condições cumulativas (para facilitar a compreensão, vamos ignorar que o crime ou a contravenção tenham sido praticadas no exterior, ou seja, fora do território nacional, ainda que por extensão):
que ele tenha praticado um crime ou uma contravenção;
que a sentença em relação a esse crime ou a essa contravenção tenha “transitado em julgado” (ou seja, seja definitiva); e
que ele tenha praticado novo crime ou nova contravenção dentro de cinco anos após a extinção ou cumprimento da pena (nestes casos, ele poderá ser considerado, em tese, reincidente. há uma importante exceção: por falha legislativa, se o agente pratica contravenção, e posteriormente pratica crime, não é considerado reincidente, desde que dentro do período depurador de cinco anos).
A figura abaixo explicita com mais clareza o fenômeno da reincidência:
O importante aqui é apontar a possibilidade de que determinado criminoso cometa dezenas de crimes antes de ser tecnicamente considerado primário. Como? Basta que ele pratique os crimes antes que qualquer deles transite em julgado (tenha sentença condenatória definitiva).
A figura abaixo demonstra esse fenômeno:
No exemplo acima – que infelizmente está longe de ser exceção –, o sujeito pode cometer oito crimes antes de ser considerado reincidente para os fins penais. Em outras palavras: PARA TODOS OS EFEITOS PENAIS, MESMO TENDO COMETIDO OITO CRIMES, ELE SERÁ CONSIDERADO PRIMÁRIO EM TODOS ELES!
Como se vê, o “divisor de águas” entre a primariedade e a reincidência é o trânsito em julgado por alguma infração penal antecedente. Isso não seria problema, caso a justiça criminal fosse mais veloz na condução de processos. Não é o que ocorre.
De acordo com o relatório “Justiça em Números de 2022”, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, o tempo médio de duração de processo criminais, até o trânsito em julgado da condenação, é de 4 anos, sem contar o período de duração do processo no Supremo Tribunal Federal.
Ou seja, determinado indivíduo pode iniciar sua carreira criminosa e nela permanecer por aproximadamente quatro anos, sem que sequer seja considerado reincidente. Uma anomalia.
A situação se torna ainda mais grave porque o agente sequer pode ser considerado como portador de “maus antecedentes” para fins de dosimetria da pena privativa de liberdade. É o que diz expressamente o STF (Tema 129):
A existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado não pode ser considerada como maus antecedentes para fins de dosimetria da pena.
O único alívio é que, por enquanto, ao menos, os Tribunais Superiores têm considerado que o fenômeno da reincidência, passado o período depurador de cinco anos, mencionado no art. 64, I, do CP, ainda pode ser considerado como “maus antecedentes” para fins penais.
Por enquanto...
Não se aplica ao reconhecimento dos maus antecedentes o prazo quinquenal de prescrição da reincidência, previsto no art. 64, I, do Código Penal, podendo o julgador, fundamentada e eventualmente, não promover qualquer incremento da pena-base em razão de condenações pretéritas, quando as considerar desimportantes, ou demasiadamente distanciadas no tempo, e, portanto, não necessárias à prevenção e repressão do crime, nos termos do comando do artigo 59, do Código Penal.
Em outras palavras, ainda que tenha decorrido prazo superior a cinco anos da extinção ou do cumprimento da pena, apesar de o agente não ser mais reincidente, ele será portador de maus antecedentes, o que possui reflexo na dosimetria da pena.
Mas quais são as consequências da reincidência criminal para fins penais? Apenas para citar alguns exemplos:
no cálculo da dosimetria da pena privativa de liberdade, a reincidência é considerada como agravante (art. 61, I, CP), o que, em regra, eleva a pena no patamar de 1/6 (um sexto) sobre a pena-base (aquela definida na primeira fase da dosimetria);
a reincidência (ou a não primariedade) retira alguns benefícios penais específicos, como hipóteses privilegiadas de alguns delitos (art. 155, § 2º; art. 168-A, § 3º; art. 171, § 1º; art. 180, § 5º, todos do CP, entre outras previsões semelhantes);
no âmbito do Código de Processo Penal (CPP), o agente perde certos benefícios, como o acordo de não persecução penal (ANPP – art. 28-A, CPP). Além disso, está sujeito à prisão preventiva (art. 310, § 2º; e art. 313, II, CPP); e
a reincidência também influencia no período necessário para progressão de regime, a teor do previsto no art. 112 da Lei de Execuções Penais.
Diante do que foi discutido, apresentamos agora argumentos científicos que embasam a necessidade do tratamento severo da reincidência. Falk e colaboradores, analisando o histórico criminal de aproximadamente 93 mil indivíduos na Suécia, descobriram um dado estarrecedor: 1% dos “criminosos persistentes” cometem mais de 63% dos delitos violentos. Para o estudo, os “criminosos persistentes” são aqueles que possuem três ou mais condenações.
Outro dado interessante descoberto foi o de que 0,12% dos indivíduos cometem cerca de 20% (1/5) do total de delitos violentos – em média 11 delitos por indivíduo. Um número estarrecedor e que demonstra a premente necessidade de tratamento penal mais gravoso para esse grupo criminoso.
Os resultados do estudo também indicam que, se os “criminosos persistentes” tivessem sido encarcerados e mantidos nessa condição após o primeiro delito, mais da metade (53%) dos delitos teria sido evitada.
Discussão importante contida no estudo trata de elementos que estão correlacionados à reincidência. Entre eles, podemos citar as seguintes características pessoais dos indivíduos analisados:
pais já condenados por crimes violentos;
pais com alguma doença psiquiátrica;
condenação por crime/ato infracional entre 15 e 18 anos de idade; e
problemas prévios com substâncias ilícitas.
Esse estudo está em compasso com outros trabalhos científicos que estudam a reincidência criminal, indicando que importante parcela dos delitos é cometida por indivíduos reincidentes (O conceito de “reincidente” varia de acordo com o ordenamento jurídico, mas de uma forma geral são aqueles que já foram condenados pelo delito, não necessariamente com “trânsito em julgado”, figura que tem importância no ordenamento brasileiro. Importante mencionar que na maioria dos países a sentença condenatória é executada em primeira instância, ou no máximo após revisão por colegiado).
Os achados acima são lógicos e, de certa forma, até óbvios. Quando estudamos distribuições normais, é esperado que tenhamos o gráfico de sino (“bell curve”), ou seja, um desenho semelhante a parábola, que estabelece a frequência de distribuições de determinado evento.
A figura a seguir explica o fenômeno:
Explicando melhor o gráfico, e sua aplicação aos casos criminais, podemos concluir que a maioria dos indivíduos se situa dentro da “normalidade”, ou seja, não cometem crimes ou os cometem com pequena frequência.
A faixa inferior a três desvios-padrão (no gráfico, o que for à esquerda de -3), representa os indivíduos que são altamente recidivos, ou seja, os “criminosos persistentes”, que representam pequena parcela da população, mas que têm alta propensão ao cometimento de delitos.
De modo interessante, esse achado vai ao encontro da teoria de “assimetria” defendida por Nassim Taleb, em seu livro “A Lógica do Cisne Negro”. Para esse autor, os casos ditos “excepcionais”, ou seja, de frequência raríssima, têm elevado impacto na natureza. No nosso caso, as “assimetrias”, ou seja, os indivíduos com alta propensão a reincidir, cometem mais de 50% dos delitos.
Como se vê, há fundamentos jurídicos, científicos e matemáticos para o tratamento penal mais severo para os reincidentes, especialmente para os multirreincidentes, que fazem do crime uma verdadeira profissão.
A rigidez penal para os multirreincidentes estaria inclusive de acordo com o princípio da isonomia, de teor constitucional, necessitando-se tratar os desiguais na medida de sua desigualdade. Além disso, o aprisionamento de indivíduos com alta propensão ao crime evitaria gastos desnecessários com o sistema de justiça criminal, cujo crédito poderia ser investido em penas alternativas (para os defensores dessa modalidade).
A intervenção precoce do Estado, direcionada a indivíduos com elevada propensão à reincidência, e principalmente aos multirreincidentes, pode gerar muitos efeitos benéficos no sistema de persecução penal.
Entretanto, considerando o ordenamento jurídico brasileiro, é necessária reforma do instituto da reincidência, principalmente do seu conceito, possibilitando tratamento penal diferenciado aos condenados, ainda que não haja trânsito em julgado.
Utilizando-se de analogia já existente, pode-se, ao menos inicialmente, utilizar a previsão contida na Lei das Inelegibilidades (art. 1º, I, alíneas “a” e “e”, por exemplo, da LC 64/90), que estipula que será “ficha suja” aquela pessoa que tenha sido condenada (i) com trânsito em julgado ou (ii) por órgão colegiado.
A partir dessa modificação, bastaria que houvesse condenação em primeira instância, sem recurso – o que corresponde ao “trânsito em julgado” –, ou decisão condenatória proferida por órgão colegiado (Turma ou Seção de Tribunal, por exemplo), o que reduziria significativamente a duração dos processos criminais, ao menos para caracterização do fenômeno da reincidência.
Não se trata aqui de afirmar que o indivíduo já é culpado, mas de haver, de modo proporcional e razoável, após decisão por órgão colegiado, um juízo de probabilidade de que aquele indivíduo – já condenado por outros delitos, frise-se – deve receber tratamento penal mais severo.
O NISP considera imprescindível a modificação da legislação para que seja modificado o conceito legal de reincidência.
Referências
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Para citar somente alguns: https://g1.globo.com/mg/grande-minas/noticia/2021/03/30/com-varias-passagens-por-furto-homem-e-preso-novamente-pelo-mesmo-crime-em-salinas.ghtml; https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/07/26/com-quase-50-passagens-pela-policia-preso-por-morte-da-ex-mulher-no-rio-confessa-o-crime-dei-tiro-nela.ghtml; https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2022/11/5055614-preso-criminoso-que-esfaqueou-mulher-e-ex-companheiro-dela-em-samambaia.html; https://www.em.com.br/gerais/2024/05/6867871-homem-com-diversas-passagens-pela-policia-e-preso-em-rodovia-de-minas.html; https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2021/08/4941393-homem-com-varias-passagens-pela-policia-e-flagrado-vendendo-crack-em-vicente-pires.html.
STF. Tema 150 de repercussão geral. Disponível em https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2642160&numeroProcesso=593818&classeProcesso=RE&numeroTema=150. Acesso em 8 de julho de 2024.
Disponível em https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-reiterada-1/direito-penal/aplicacao-da-fracao-paradigma-de-1-6-para-aumento-ou-diminuicao-da-pena-na-segunda-fase-da-dosimetria. Acesso em 8 de julho de 2024.
Fonte: https://pt.khanacademy.org/math/statistics-probability/modeling-distributions-of-data/normal-distributions-library/a/normal-distributions-review. Acesso em 8 de julho de 2024.
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