A diferença entre Oruam, Poze do Rodo e Racionais MCs: a cultura importa?
- Rafael Erthal
- há 5 dias
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Por Rafael Erthal - Coordenador do Instituto NISP
Introdução – o que é cultura?
Cultura importa. Mas é importante, antes de tudo, conceituar o termo. Afinal de contas, o que é cultura para os fins deste texto? Para Tylor[1], cultura é:
“Cultura, ou civilização, tomada em seu sentido etnográfico mais amplo, é esse todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, direito, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo ser humano enquanto membro da sociedade.”
Tendo esse conceito em vista, podemos conceituar cultura, sinteticamente, como o conjunto de fatores sociais, políticos, artísticos, econômicos e valorativos de uma organização social. A música, manifestação cultural própria dos seres humanos, é, portanto, parte integrante desse conceito.
A respeito da cultura, Marx apontava que fazia parte da “superestrutura”, definida pelo fenômeno do materialismo histórico, definido a partir da concentração de riqueza. As relações econômicas, oriundas do sistema capitalista da época, fundavam a base da sociedade, sendo considerada a “infraestrutura” social, da qual se originavam todos os demais fatores sociais, entre eles a cultura. A dialética marxista admitia – ainda que indiretamente – a relação entre cultura e capital, retroalimentando o sistema capitalista e moldando-o. Autores mais modernos, como Adorno, Althusser e Gramsci, pontuam com maior profundidade a relação entre cultura (parte da superestrutura marxista) e os fatores materiais de produção (infraestrutura marxista).
Entretanto, fora do âmbito da teoria marxista, diversos outros estudiosos apontam a cultura como fenômeno independente da sociedade capitalista, sendo também apontado como aspecto determinante para a formação e transformação das relações materialistas. Ou seja, na verdade a cultura (isto é, as relações sociais e seus valores, tomadas em sua inteireza) seria a responsável pelas relações materiais e econômicas, e não o contrário. Entre esses autores, podemos citar Weber – cuja clássica obra[2] relacionou a religião protestante como condição necessária para o surgimento e desenvolvimento do capitalismo moderno –, e alguns autores de inspiração marxista – como Foucault –, que apontam que as relações de poder atravessam, no caso deste, discurso, corpo e saber dentro de vínculos sociais e materiais[3].
Tomada como premissa esta segunda característica da cultura, isto é, fator que molda a realidade – apesar de também ser moldada por ela –, o fato é que a cultura, principalmente a cultura de “massa” existente na atualidade, é fundamental para entender o contexto da criminalidade no Brasil. Para tal, iremos comparar os recentes acontecimentos no Rio de Janeiro no cenário criminal, envolvendo os “MCs” Oruam (Mauro Davi dos Santos Nepomuceno) e Poze do Rodo (Marlon Brandon Coelho Couto), com o fenômeno rap do final dos anos 80 e início dos anos 90 na capital paulista, representado pelo conjunto “Racionais MCs”.
Juntos, mas desiguais – Oruam, Poze do Rodo e Racionais MC’s
Os artistas citados são oriundos de comunidades economicamente vulneráveis, permeados por problemas sociais e de ordem criminal. Aliás, muitas de suas músicas tratam justamente dessa triste realidade. Esses artistas – como produto e produtores da cultura – influenciam milhões de pessoas, especialmente jovens. As letras das músicas, inegavelmente contundentes, apontam para suas “realidades cotidianas”, apesar de vários dos MCs mais atuais já se verem longe das favelas, e consequentemente de seus problemas, há muito tempo.
Apesar de haver certa interseção entre os artistas citados, a coincidência de características vai até certo ponto, divergindo decisivamente no modo como as críticas são feitas por meio de suas letras cantadas. Para exemplificar, é imprescindível trazer trechos das canções para o texto. Vamos começar com os Racionais MCs (grifos nossos):
O Homem na Estrada – Racionais MC’s – 1993
Um homem na estrada recomeça sua vida
Sua finalidade, a sua liberdade
Que foi perdida, subtraída
E quer provar a si mesmo que realmente mudou
Que se recuperou e quer viver em paz
Não olhar para trás
Dizer ao crime, "nunca mais!"
Pois sua infância não foi um mar de rosas, não
(...)
Me digam quem é feliz
Quem não se desespera
Vendo nascer seu filho no berço da miséria?
Um lugar onde só tinham como atração
O bar, e o candomblé[4] pra se tomar a benção
(...)
Até o IBGE[5] passou aqui e nunca mais voltou (e, e, e nunca mais voltou)
Numerou os barracos, fez uma pá de perguntas
Logo depois esqueceram, filha da puta
(...)
Deu meia noite e o corpo ainda estava lá
Coberto com lençol, ressecado pelo sol, jogado
O IML[6] estava só dez horas atrasado
Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim
Quero que meu filho nem se lembre daqui
Tenha uma vida segura
Não quero que ele cresça
(...)
Desempregado então
Com má reputação
Viveu na detenção
Ninguém confia não
E a vida desse homem para sempre foi danificada
(...)
Os ricos fazem campanha contra as drogas
E falam sobre o poder destrutivo dela
Por outro lado promovem e ganham muito dinheiro
Com o álcool que é vendido na favela
(...)
A justiça criminal é implacável
Tiram sua liberdade, família e moral
Mesmo longe do sistema carcerário
Te chamarão para sempre de ex-presidiário
Não confio na polícia, raça do caralho
(...)
Na madrugada da favela não existem leis
Talvez a lei do silêncio, a lei do cão, talvez
Vão invadir o seu barraco, "é a polícia!"
Vieram pra arregaçar, cheios de ódio e malícia
Filhos da puta, comedores de carniça
(...)
Diário de um Detento – Racionais MCs – 1997
São Paulo, dia primeiro de outubro de 1992[9], oito horas da manhã
Aqui estou, mais um dia
Sob o olhar sanguinário do vigia
Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK[10]
Metralhadora Alemã ou de Israel
Estraçalha ladrão que nem papel
(...)
Vários tentaram fugir, eu também quero
Mas de um a cem, a minha chance é zero
Será que Deus ouviu minha oração?
Será que o juiz aceitou a apelação?
Mando um recado lá pro meu irmão
Se tiver usando droga, 'tá ruim na minha mão!
Ele ainda 'tá com aquela mina
Pode crer, moleque é gente fina
(...)
Lamentos no corredor, na cela, no pátio
Ao redor do campo, em todos os cantos
Mas eu conheço o sistema, meu irmão, hã
Aqui não tem santo
(...)
Graças a Deus e à Virgem Maria
Faltam só um ano, três meses e uns dias
(...)
Aí moleque, me diz então, cê qué o quê?
A vaga 'tá lá esperando você
Pega todos seus artigos importados
Seu currículo no crime e limpa o rabo
A vida bandida é sem futuro
Sua cara fica branca desse lado do muro
Já ouviu falar de Lúcifer?
Que veio do inferno com moral
Um dia no Carandiru, não ele é só mais um
Comendo rango azedo com pneumonia
(...)
Aí neguinho, vem cá, e os manos onde é que 'tá?
Lembra desse cururu que tentou me matar?
Aquele puta ganso, pilantra corno manso
Ficava muito doido e deixava a mina só
A mina era virgem e ainda era menor
Agora faz chupeta em troca de pó!
Esses papos me incomoda
Se eu 'tô na rua é foda
É, o mundo roda, ele pode vir pra cá
Não, já, já, meu processo 'tá aí
Eu quero mudar, eu quero sair
Se eu trombo esse fulano, não tem pá, não tem pum
E eu vou ter que assinar um cento e vinte e um[11]
(...)
Fleury[12] foi almoçar, que se foda a minha mãe!
Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo
Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio!
(...)
Adolf Hitler sorri no inferno!
O Robocop do governo é frio, não sente pena
Só ódio e ri como a hiena
Ratatatá, Fleury e sua gangue
Vão nadar numa piscina de sangue
Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de Outubro, diário de um detento
Apesar de as letras das músicas serem bastante fortes, incisivas e críticas, ficam longe de fazer qualquer apologia a criminoso ou incitação ao crime – ambas condutas criminalizadas pelo Código Penal atual. Pelo contrário, em diversos versos há reprovação da ação criminal, apesar de as músicas tratarem especificamente do tema, inclusive trazendo exemplos concretos. Apesar das duras palavras contra as instituições estatais, não há qualquer incentivo à violência contra agentes ou órgãos públicos: há, sim, revolta contra o que os Racionais consideram injustiça sistêmica, produzida, entre outros fatores, pelo completo abandono estatal das comunidades e dos respectivos moradores (“Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou (e, e, e nunca mais voltou”)
Por último, é importante assinalar a completa reprovação de indivíduos que se relacionam com mulheres menores de idade (inclusive ainda virgens). Para essas pessoas, as letras consideram até mesmo o uso de violência extrema, incluindo a morte. Percebe-se ampla, irrestrita e inequívoca reprovação a esses atos.
Vamos, agora, analisar letras de músicas de MC Poze do Rodo e Oruam[13]:
A cara do crime (Nós Incomoda) – MC Poze do Rodo – 2021
É o Poze do Rodo
A cara do crime
Ela fala que quer crime e eu sou criminoso
Ela é da Zona Sul e eu sou cria do Rodo[14]
(...)
Delegado não entende a filha dele do meu lado
Escondendo no sutiã MD[15] e baseado
Nóis para tudo, se pergunta quem é o pretin'
Eles não entendem de onde vem tanto dindin'
(...)
Ela quer o PL Quest
Nóis é a cara do crime, quando senta não se esquece
(...)
Meio quilo de ouro no meu pescoço
BMW com banco de couro
Pelo meus crias eu também mato e morro
Fora da lei
Sereia – Oruam – 2021
Mas em matéria de sexo, ela tem habilidade
Cê sabe bem quem são os seus amigo de verdade
Então, vamos foder gostoso sem forçar intimidade
Duzentos mil no final de semana
(...)
Essa bunda enorme só cabe na minha frente
Ver você dançar com esses otários me ofende
Faz eu me lembrar daquele vídeo que tu mandou na DM
Pensando que meu piru era um pente
Fodendo gostoso, segurando minha corrente
(...)
Nós dois se encontra, fogo na marijuana
Afrodite, ela é a deusa do tesão
(...)
Sereia, te encontrei na areia
Fumando um no posto 9, três e meia
Eu vim de Bangu, pô, ah, fazer meu pé de
Meu pé de meia, nosso amor é chave de cadeia
(...)
Filha da puta, rasgou minha blusa
Acreditei nessas coisinhas de momento
Já tava começando a ver o casamento
Isso mudou meu pensamento
Ver que tu virou puta com o tempo
Essa piranha quer foder comigo
Ocasião que faz o bandido
Várias sereias no meu carro, bicho
Peita minha tropa, vai ficar fodido
Essa piranha quer foder comigo
Ocasião que faz o bandido
Várias sereias no meu carro, bicho
Peita minha tropa, vai ficar fodido
(...)
A comparação entre as letras dos Racionais MC’s e dos MCs Poze do Rodo e Oruam aponta para uma realidade bastante óbvia: além da evidente falta de qualidade linguística nas letras dos últimos, há também importante diferença no conteúdo que não pode ser ignorada – a presença de elementos laudatórios à vida criminosa e o flagrante desrespeito à figura feminina.
A influência perversa do Gangsta Rap na comunidade negra, segundo Thomas Sowell
O estilo Gangsta Rap parece ter sido o precursor do estilo musical de Poze do Rodo e afins. Nos EUA, o estilo foi uma derivação do Rap original, que tinha linguagem bastante afiada, crítica e desafiadora às instituições (principalmente à polícia). As letras do rap retratavam a desigualdade social, a pobreza, a criminalidade e o abuso de autoridade dos policiais frente aos indivíduos pobres – sobretudo negros. Afastando-se da cultura rapper inicial, o Gangsta rap passou a tecer elogios a uma subcultura criminosa cujos componentes indissociáveis eram tráfico de drogas, misoginia, promiscuidade e materialismo – todos elementos presentes nas letras de Poze do Rodo e de Oruam.
Os Gangsta rappers eram frequentemente envolvidos em ocorrências policiais, e muitos já tinham diversas passagens pela polícia quando atingiram o sucesso. Não havia relacionamento pacífico sequer entre os membros do estilo. Entre os membros da East Coast e da West Coast, representados por Nova Iorque e Los Angeles, respectivamente, havia intensos conflitos e ameaças. Até hoje não esclarecidos totalmente, as mortes dos Gangsta rappers Notorious B.I.G e de 2Pac Shakur seriam fruto da briga de gangues entre as “costas” americanas.
Mas qual é a importância sociocultural do fenômeno Gangsta rap? Alguns autores estudaram o tema, e principalmente sua relação com a criminalidade nessa subcultura – formada majoritariamente por população negra e periférica. Thomas Sowell, um dos maiores intelectuais dessa área acadêmica, pontua, a respeito da cultura de Gangsta rap que:
O dogma multiculturalista segundo o qual uma cultura vale tanto quanto qualquer outra acaba confinando as pessoas ao canto cultural em que, por acaso, nasceram, mesmo quando há culturas ao redor com características que lhes ofereceriam melhores perspectivas de ascensão.
Falar simplesmente o inglês padrão em um país de língua inglesa já pode aumentar as chances de progredir. Contudo, a celebração multiculturalista de línguas estrangeiras ou dialetos étnicos — e de padrões culturais contraproducentes, exemplificados por manifestações como o gangsta rap — pode promover justamente a estagnação social que esses mesmos multiculturalistas atribuem à “sociedade”.
Enquanto isso, imigrantes ou refugiados asiáticos que aqui chegam não se veem prejudicados nem distraídos por uma visão social contraproducente, carregada de inveja, ressentimento e paranoia, e por isso conseguem ascender na mesma sociedade em que se afirma faltar oportunidades.[16]
Falando sobre como a população negra acabou adotando elementos culturais dos velhos rednecks brancos (caipiras), Sowell afirma que:
A dolorosa ironia é que aqueles que fazem essa acusação estão, eles mesmos, “agindo como brancos” ao perpetuar uma cultura redneck de uma era passada. Até mesmo uma criação de gueto tão moderna quanto o gangsta rap ecoa a violência, a arrogância, a sexualidade permissiva e a auto dramatização que há séculos caracterizam a cultura redneck branca, além de recorrer a cadências exageradas típicas da oratória dos rednecks tanto no Sul pré-Guerra Civil quanto nas regiões da Grã-Bretanha de onde vieram seus antepassados[17].
A principal lição que podemos extrair dos ensinamentos de Sowell é que cultura importa, e muito. Conforme demonstrado pelo próprio autor em outras leituras, a formação das subculturas de gueto e de thug life[18] foi fomentada diretamente pela mídia e por outros setores da sociedade civil, como se fosse a manifestação cultural própria da comunidade negra, enquanto se esquecia que a mesma comunidade fora responsável por estilos musicais como o jazz, o funk e o soul, e mesmo o rap na sua acepção original.
Ademais, a subcultura socialmente construída (e não inerente à comunidade negra) também está correlacionada com outro fenômeno importante e extremamente destrutivo: a formação de famílias uniparentais, representadas normalmente pela genitora e pelos filhos, sem os pais. Como demonstrado em outro artigo desta plataforma[19], a ausência da figura paterna tem consequências catastróficas, principalmente para adolescentes do sexo masculino. Importante ressaltar que Sowell demonstra o aumento da criminalidade entre negros apesar das políticas de bem-estar social colocadas em prática após 1960.
Antes de 1960, mesmo com a ausência de políticas públicas com enfoque na população negra – e na verdade mesmo com a existência de legislações claramente racistas, como as leis Jim Crow –, a minoria das famílias negras eram uniparentais, sendo a regra o núcleo familiar formado por ambos os pais. Ainda que houvesse extrema penúria no sentido jurídico, a população negra teve imensos ganhos socioeconômicos desde o final da Guerra Civil até meados do século XX, sem que, frise-se, existisse qualquer tipo de política pública direcionado precisamente para esse segmento[20].
Para Sowell, a explicação para o avanço socioeconômico se deve à manutenção do núcleo familiar biparental e à manutenção da cultura pós-Guerra Civil, em que se dava primazia para elementos como o esforço individual, o valor do trabalho e, importante destacar, a completa ausência das subculturas Gangsta rap e Thug Life, que colonizaram a população negra no final do século XX. No Harlem e em outros bairros considerados “negros”, até 1950, os níveis de homicídio eram muito menores do que nas décadas seguintes, quando a disciplina escolar estava em decadência e ocorreu a erosão familiar. Ambos esses elementos eram e são incentivados por fenômenos culturais de guetos[21].
Se a subcultura delinquente, estimulada por gêneros musicais como Gangsta Rap, provocou consequências severas para a população negra (principalmente os mais jovens) nos Estados Unidos, país desenvolvido e provido de mecanismos socioeconômicos muito melhores que os brasileiros, o que dizer das consequências dessa subcultura em um país pobre e extremamente desigual como o Brasil, sem arcabouço social adequado? Podemos esperar desfechos ainda mais trágicos, considerando a realidade brasileira e o alcance que esse estilo musical – representado por Oruams e Pozes do Rodo – tem em comunidades socialmente vulneráveis (como as favelas em geral).
A consequência perversa das “subculturas delinquentes” segundo Theodore Dalrymple
Outro autor que analisa as consequências das “subculturas delinquentes”, mas por um prisma mais sociológico, é Theodore Dalrymple (pseudônimo do escritor britânico Anthony Daniels).
Em dois livros[22] de sua extensa obra a respeito da análise sociocultural britânica, Dalrymple destaca a progressiva erosão da cultura – com evidentes consequências socioeconômicas, especialmente para os mais pobres. Em vez de a cultura dita de “elite”[23] – erudita, intelectual e promotora do desenvolvimento social e da riqueza – continuar a ser o farol de referência da sociedade, o pós-modernismo a substituiu pela “subcultura delinquente”, originada de parcelas marginalizadas da sociedade, como criminosos e prostitutas.
Uma abordagem míope pode acusar uma visão preconceituosa de Dalrymple frente a esses indivíduos “marginalizados” e suas características, mas o fato é que o autor – cujo trabalho dentro de penitenciárias, como psiquiatra, se estendeu por décadas – demonstra com clareza como a mudança cultural provocou enormes retrocessos socioeconômicos na sociedade inglesa.
Elementos como vulgaridade na linguagem e no vestuário; irresponsabilidade pessoal por seus atos; desdém por tradições e instituições; consumo cultural orientado pela agressividade e pela sexualização precoce; e dissolução dos laços familiares e da disciplina moral – todos próprios de uma “subcultura delinquente” – provocaram enormes mudanças, todas para pior, na Inglaterra de Dalrymple.
Fazendo duras críticas à elite contemporânea de seu país, o autor aponta que a fração mais prestigiada da sociedade (elites intelectual, econômica, cultural etc.) não somente abandonou seu papel de servir como referência para a população, mas também absorveu e adotou, ao menos externamente, subculturas contraproducentes, entre elas a delinquente, fomentando esse comportamento antissocial em todos os segmentos.
Nas palavras de Dalrymple, criticando a ausência de qualquer tipo de parâmetro objetivo de julgamento:
“O não-julgamento não é realmente isento de julgamento. Ele é o julgamento de que... tudo é igual, nada é melhor. Esta é uma doutrina tão bárbara e falsa quanto qualquer outra já surgida da mente fértil do homem.”
E também:
“O objetivo de milhões de pessoas é serem livres para fazer exatamente o que quiserem, e que outra pessoa pague quando algo dá errado.”
Conclusão
Se a elite – mesmo que adote uma postura delinquente – tem meios para sobreviver a esse comportamento prejudicial, igual sorte não tem a população mais vulnerável. As parcelas mais ricas da sociedade têm condições de lidar, por exemplo, com problemas como vício em drogas ou álcool em seu seio familiar. Também possuem condições econômicas de oferecer a melhor educação que o dinheiro pode comprar. Têm contatos que podem garantir empregabilidade futura, com elevados salários.
Mas e os pobres?
Além de não fornecer boa cultura para a população economicamente frágil, as elites ainda insistem em incentivar, ao menos para fora, uma subcultura delinquente que praticamente eterniza a condição depauperada daquela. A elite progressista que tanto critica o genocídio da população pobre e negra – seja em que país for ocidental for – é a mesma que pereniza, desestrutura e relega essa mesma população à condição de extrema pobreza intelectual, cultural e moral, por fomentar comportamentos absolutamente degradantes e contraproducentes, e que, ironicamente, não seriam adotados nem aceitos, em regra, dentro de suas próprias famílias.
Cabe às elites brasileiras a responsabilidade de, ao menos, apresentar aos demais segmentos sociais os fenômenos culturais e artísticos que efetivamente fomentem o desenvolvimento pleno dos indivíduos. Cabe-lhes deixar essa postura injusta – e no limite egoísta – de tratar a população vulnerável como se fossem sujeitos inimputáveis e incapazes intelectualmente, dignos de pena e indignos da “boa cultura” que é consumida pelas elites.
Cabe à classe artística reconhecer o potencial cultural das populações vulneráveis, responsáveis pela criação do funk, do soul, e do jazz nos Estados Unidos; e pelo samba no Brasil, entre muitas outras manifestações artísticas e culturais de extrema riqueza intelectual.
Cabe aos MCs retornar às origens e se inspirar nos Racionais, de linguagem dura e de protesto, mas sem perder o valor musical ao apelar para manifestações que apenas desprezam a população pobre e e negra, mantendo-a “em seu lugar”.
Cultura importa.
[1] TYLOR, Edward B. Primitive Culture. 2 v. London: John Murray, 1871.
[2] WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 38. ed. Petrópolis: Vozes, 2021.
[4] Nas periferias paulistas da época, era comum a presença de terreiros de candomblé. Hoje, o apoio religioso foi substituído pelas igrejas evangélicas, na maior parte neopentecostais.
[5] O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – é responsável por mapear a população brasileira, por meio de censos.
[6] Os Institutos Médicos Legais (IMLs) são responsáveis pelo recolhimento de corpos (cadáveres) após homicídios.
[7] Referência ao “calibre .38”, de muitas armas de fogo.
[8] Referência aos modelos “PT” da fabricante de armas de fogo Taurus.
[9] A canção começa fazendo referência ao dia primeiro de outubro de 1992, véspera do Massacre do Carandiru, que ocorreu no presídio em 2 de outubro de 1992. No evento, foram mortos 111 presos, muitos dos quais – segundo investigações – foram sumariamente executados, sem motivo legítimo.
[10] Referência explicada no verso seguinte.
[11] Referência ao art. 121 do Código Penal, que trata do crime de homicídio.
[12] Luiz Antônio Fleury Filho era o governador de São Paulo na época do Massacre do Carandiru. Não confundir com Sérgio Paranhos Fleury, delegado de São Paulo e integrante do DOPS durante a ditadura militar.
[13] As músicas foram escolhidas em virtude de sua relevância e popularidade. Ambas têm cerca de 200 milhões de visualizações na plataforma Spotify.
[14] Favela do Rodo é o nome de uma favela carioca, que antes era chamada de “Favela do Rollas”. A mudança de nome ocorreu em virtude de determinação dos próprios traficantes do local, dado o sentido negativo da palavra “rollas” que adquire no uso cotidiano.
[15] MD faz referência à droga MDMA – 3,4-metilenodioximetanfetamina, um análogo da anfetamina. É comumente utilizada em festas de música eletrônica e afins.
[16] SOWELL, Thomas. Economic Mobility. Disponível em https://www.creators.com/read/thomas-sowell/03/13/economic-mobility. Acesso em 2 de junho de 2025.
[17] SOWELL, Thomas. Black rednecks & white liberals. 1. ed. Stanford: Hoover Institution Press, 2005.
[18] Apesar de conteúdo originalmente de protesto, o termo atualmente se refere literalmente a “vida bandida”.
[19] ERTHAL, Rafael. Ausência paterna, paternidade severa e criminalidade juvenil: implicações para políticas de segurança pública. Ou: como pais ruins podem criar criminosos juvenis. Disponível em: https://www.nispbr.org/post/aus%C3%AAncia-paterna-paternidade-severa-e-criminalidade-juvenil-implica%C3%A7%C3%B5es-para-pol%C3%ADticas-de-seguran%C3%A7. Acesso em 3 de junho de 2025.
[20] SOWELL, Thomas. Race and Economics. New York: David McKay, 1975.
[21] Idem, ibidem.
[22] DALRYMPLE, Theodore. Life at the Bottom: The Worldview That Makes the Underclass. Chicago: Ivan R. Dee, 2001; DALRYMPLE, Theodore. Our Culture, What’s Left of It: The Mandarins and the Masses. Chicago: Ivan R. Dee, 2005.
[23] O termo “elite” aqui utilizado não tem caráter pejorativo nem preconceituoso, demonstrando apenas características de uma cultura conducente à riqueza – tanto econômica quanto cultural.