Por Ricardo Ziegler, Coordenador do NISP
"A visão dos ungidos é aquela em que males como pobreza, sexo irresponsável e crime derivam principalmente da 'sociedade', em vez de escolhas e comportamentos individuais. Acreditar na responsabilidade pessoal destruiria todo o papel especial dos ungidos, cuja visão os coloca no papel de salvadores de pessoas tratadas injustamente pela 'sociedade'" (Sowell, 1995).
Introdução
O Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro tem sido um protagonista importante na interpretação contemporânea do Direito Penal, embora algumas vezes ultrapasse os limites prudenciais dos princípios de separação e harmonia dos poderes. Um exemplo recente e emblemático é o Recurso Extraordinário (RE) 635.659, Tema 506, que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal. Esta decisão gerou debates significativos sobre a natureza da ilicitude e as sanções aplicáveis a atos anteriormente considerados crimes. Este artigo examina essa decisão, contextualizando-a com a doutrina penal, especialmente com as ideias de Winfried Hassemer sobre a "administrativização" de certas condutas no âmbito do direito de intervenção.
Contextualização da Decisão do STF
No julgamento do RE 635.659, o STF decidiu que adquirir, guardar, transportar ou portar maconha para uso pessoal não configura crime, embora a prática continue ilegal. Isso resulta na apreensão da droga e na aplicação de sanções administrativas, como a participação em programas educativos, conforme o artigo 28 da Lei 11.343/06. A decisão inovou ao criar uma nova categoria de ilicitude, onde portar maconha para uso pessoal não gera consequências criminais, mas sim administrativas, aplicadas por um juiz, delineando uma fronteira tênue entre os campos penal e administrativo.
A Teoria de Winfried Hassemer e o Direito de Intervenção
Winfried Hassemer, em sua obra "Direito Penal Libertário", advoga pela "administrativização" de certas condutas tradicionalmente tratadas como crimes. Ele argumenta que, nas décadas de 80 e 90, houve uma expansão do Direito Penal para abarcar condutas prejudiciais a bens jurídicos difusos, como o meio ambiente, o consumidor, a ordem econômica e a saúde pública. Hassemer observa que essa expansão penal não diminuiu a ocorrência desses comportamentos e sugere restringir o Direito Penal a comportamentos que violam bens jurídicos individuais e de perigo concreto, como a vida, a propriedade e a liberdade, reservando as penas privativas de liberdade para essas infrações.
Hassemer propõe um campo intermediário, onde tais condutas seriam tratadas como infrações administrativas com fiscalização judicial, conceito que ele denomina Direito de Intervenção. Ele sugere que essas infrações envolvam medidas administrativas, como multas, interdições de direitos e apreensões, supervisionadas pelo Poder Judiciário e Ministério Público. A decisão do STF alinha-se a essa teoria ao transformar o porte de maconha para uso pessoal em uma infração administrativa, sujeita a medidas educacionais aplicadas pelo juiz.
O Direito de Intervenção na Prática
A teoria do direito de intervenção, conforme desenvolvida por Hassemer, defende que o direito penal deve focar em condutas que violam bens jurídicos individuais e causam perigo concreto, delegando outras questões ao direito administrativo. Esta abordagem é particularmente relevante na análise de ações de improbidade administrativa, onde as sanções são de natureza cível e visam reprimir e prevenir atos ilícitos na esfera pública sem interferir diretamente na liberdade do indivíduo.
A decisão do STF sobre o porte de maconha exemplifica essa teoria ao tratar a posse para consumo pessoal como uma infração administrativa. Quando a polícia encontra alguém portando maconha para uso pessoal, deve apreender a substância e notificar a pessoa para comparecer em juízo, sem necessidade de prisão em flagrante ou registro de Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). A presunção de uso pessoal para quantidades até 40g de maconha estabelece uma linha divisória entre o consumo pessoal e o tráfico, embora essa presunção possa ser contestada pela polícia com base em indícios de comercialização.
A decisão do STF pode ser vista como um exemplo prático da teoria de Hassemer, refletindo a ideia de que nem todas as condutas devem ser penalmente sancionadas. Hassemer destaca que a expansão do Direito Penal não resultou na diminuição das condutas ilícitas, sugerindo a necessidade de alternativas ao direito penal clássico, reservando penas privativas de liberdade para condutas graves que mereçam segregação do convívio social.
Conclusão
A decisão do STF no RE 635.659 marca um ponto significativo no Direito Penal brasileiro, alinhando-se com as propostas de Winfried Hassemer sobre a administrativização de certas condutas e o direito de intervenção. Ela pode abrir caminho para que outras infrações atualmente tratadas no campo penal passem a ser tratadas sob as premissas do Direito de Intervenção. Esta decisão reflete uma tendência de reavaliar o papel do Direito Penal e buscar alternativas a seus institutos e ao encarceramento, especialmente para comportamentos que não envolvem violência ou grave ameaça.
No entanto, é cedo para celebrar as consequências dessa decisão, pois, como argumenta Thomas Sowell, estamos diante de uma "utopia dos ungidos", onde um grupo seleto de indivíduos "iluminados" toma decisões que impactam toda a sociedade, sem enfrentar as consequências práticas caso estejam errados. Sowell adverte que aqueles com a visão dos ungidos frequentemente tomam decisões por terceiros sem arcar com as consequências de estarem equivocados, levando a políticas ineficientes e prejudiciais e minando a responsabilidade e a autonomia individuais.
REFERÊNCIAS:
OPENAI. ChatGPT: Assistente de escrita. Disponível em: https://www.openai.com/chatgpt. Acesso em: 27 jun. 2024.
SA, Acacia Regina Soares de. Direito de intervenção - A influência de Winfried Hassemer e o direito administrativo sancionador. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 22 maio 2020, 04:50. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54563/direito-de-interveno-a-influncia-de-winfried-hassemer-e-o-direito-administrativo-sancionador. Acesso em: 27 jun. 2024.
SOWELL, Thomas. The Vision of the Anointed: Self-Congratulation as a Basis for Social Policy. New York: Basic Books, 1995.