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A violência segundo o Atlas da Violência: quando o viés vem antes dos dados

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    NISP - Colunistas
  • há 2 dias
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NISP - Colunistas


A edição de 2025 do Atlas da Violência, publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública[1] (FBSP), representa uma importante iniciativa de análise dos indicadores de homicídio no Brasil. Contudo, o que poderia ser um retrato técnico e equilibrado da violência letal no país transforma-se, já em sua Seção 1 (Conjuntura da Violência no Brasil), em um exemplo claro de como o viés narrativo pode distorcer a percepção pública — mesmo diante de dados corretos.

O documento traz debate a respeito da letalidade policial. São destacados, de início, os 6.393 óbitos decorrentes de intervenções policiais em 2023, sem que se explicite — ao leitor comum — que essa cifra, embora significativa, corresponde a aproximadamente 19,5% do total de homicídios por arma de fogo registrados no Brasil naquele mesmo ano, conforme os dados do próprio Atlas (32.749 homicídios por arma de fogo). Essa estratégia editorial ilustra o que a psicologia cognitiva denomina viés de ancoragem: ao se iniciar a exposição com determinado dado, ainda que não majoritário, estabelece-se um ponto de referência psicológico que condiciona toda a interpretação subsequente.

Mas o problema vai além da ordem dos dados. O relatório reproduz, ainda que indiretamente, a ideia de que o foco central da política de segurança pública deve ser o controle da atuação estatal, inclusive por meio da atuação (questionável) do Supremo Tribunal Federal — e não o enfrentamento da criminalidade. O bem-estar do preso, do infrator ou da população afetada por ações policiais ganha primazia sobre o sofrimento das vítimas – as mais afetadas pela violência criminosa – , o direito coletivo à segurança e os riscos vividos pelos próprios profissionais da linha de frente. Essa inversão de prioridades não é assumida abertamente, mas está embutida no modo como os temas são organizados, destacados e reiterados.

Outro viés cognitivo identificado é o efeito halo: a tendência de formar um juízo global a partir de um único aspecto. Ao destacar repetidamente a violência policial como um dos “grandes problemas” da segurança pública, o Atlas induz o leitor a interpretar que essa é a principal causa da violência letal no Brasil, obscurecendo fatores dominantes como a atuação de facções armadas, a dinâmica do narcotráfico, as disputas territoriais e a banalização da morte em contextos sociais vulneráveis.

Essa narrativa é reforçada no trecho que trata da ADPF 635, ação em curso no Supremo Tribunal Federal que impôs limites à atuação da polícia nas favelas do Rio de Janeiro – a denominada “ADPF das Favelas”. O Atlas condena, sem ponderações, a flexibilização recente sobre o uso de helicópteros como plataforma de tiro — como se essa decisão fosse, por si só, um retrocesso institucional (grifos nossos):

 

Por outro lado, houve recuos em relação à inexistência de restrições territoriais quanto às operações policiais em perímetros localizados perto ou em escolas, creches, hospitais e postos de saúde e ainda quanto à possibilidade do uso e disparo de arma de fogo a partir de helicóptero[2].

 

Faltam à análise a devida contextualização operacional, os critérios de legalidade e proporcionalidade fixados pelo STF e, sobretudo, a realidade concreta de enfrentamento armado em territórios de domínio criminoso consolidado, como é o caso das comunidades objeto da ação.

O que está em jogo não é apenas a apresentação de números, mas a construção de sentido em torno deles. O Atlas da Violência não falseia dados, mas organiza a narrativa de modo a induzir a leitura de que o Estado — em especial suas forças armadas e policiais — é o principal protagonista da letalidade brasileira. Trata-se de um claro viés de enquadramento (framing bias), em que a seleção dos temas e o modo como são introduzidos ou hierarquizados orientam a interpretação mais do que os próprios dados em si.

Em um país onde a violência é estrutural, multicausal e profundamente desigual, a responsabilidade da análise pública não é apenas registrar, mas equilibrar: apresentar causas, efeitos e responsabilidades com clareza e proporcionalidade. Quando isso não ocorre, o risco não é apenas de desinformar, mas de orientar políticas públicas e decisões institucionais com base em uma lente parcial — o que, nesse caso, é tão perigoso quanto a própria violência que se pretende combater.


[2] Página 10 do documento.

 
 

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