Por Ricardo Ziegler

A Obrigatoriedade do Uso de Câmeras Corporais por Policiais e o Princípio da Não Autoincriminação
“Banida, portanto, a justiça, o que são os reinos senão grandes quadrilhas de ladrões? O que são as próprias quadrilhas de ladrões (latrocinia) senão um pequeno reino? São também um bando de homens, regido pelo comando de um chefe, unido por um pacto de sociedade, com o roubo repartido pela lei do arbítrio. Se esse mal se avoluma com o ingresso de muitos homens perdidos, a ponto de apossar-se de localidades, constituir sedes, ocupar cidades, subjugar povos, mais evidentemente ganha o nome de reino, que abertamente lhe confere não a cobiça abandonada, mas a impunidade agregada”.
CIDADE DE DEUS – Santo Agostinho
Solução Transparente ou Intrusão Desproporcional?
A obrigatoriedade do uso de câmeras corporais por policiais (BodyCam) tornou-se tema central em debates sobre segurança pública no Brasil. Defensores argumentam que essa tecnologia promove transparência, protege juridicamente os agentes e fortalece a produção de provas na persecução penal. Decisões como a da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que determinou a gravação do consentimento de moradores em casos de ingresso domiciliar sem mandado, ilustram esse movimento¹.
Contudo, a posição encontra resistência. O Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do Ministro Alexandre de Moraes, anulou decisões do STJ que determinavam obrigações às forças de segurança para o uso de câmeras, ressaltando que a medida extrapola as competências constitucionais e legislativas². Nesse contexto, surge o questionamento: a implementação compulsória de câmeras corporais é uma solução eficaz ou um ataque aos direitos fundamentais dos policiais, especialmente ao princípio da não autoincriminação?
Com o Brasil enfrentando índices alarmantes de violência, é crucial avaliar como essa tecnologia impacta a intimidade, dignidade e eficiência do trabalho policial.
O Princípio da Não Autoincriminação e o Uso de Câmeras Corporais
O princípio do nemo tenetur se detegere, consagrado no Pacto de São José da Costa Rica e na Constituição Federal de 1988, assegura que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo³. Este princípio não se limita a acusados; abrange qualquer pessoa em situações que possam levar à autoincriminação.
No contexto das câmeras corporais, sua imposição levanta sérios questionamentos jurídicos. Policiais são obrigados a gravar continuamente suas atividades, criando o risco de que essas imagens sejam utilizadas para responsabilizá-los penal ou administrativamente, mesmo quando captadas sob coação. Não ativar a câmera pode ser interpretado como descumprimento de dever funcional, implicando sanções disciplinares ou até mesmo caracterização de crime militar, conforme previsto no Código Penal Militar (art. 324)⁴.
Além disso, a utilização de gravações obtidas compulsoriamente como prova contra o próprio policial configura uma violação ao art. 5º, LVI da Constituição Federal e ao art. 157 do Código de Processo Penal, que proíbem provas obtidas de forma ilícita⁵ entre outros casos quando não há voluntariedade do réu. Nesse cenário, a obrigatoriedade de câmeras corporais pode se tornar uma afronta direta às garantias fundamentais, comprometendo a proteção dos direitos dos agentes.
Impactos Psicológicos e Operacionais do Monitoramento Permanente
Embora o uso de câmeras corporais seja frequentemente exaltado como medida de transparência, sua implementação obrigatória traz implicações negativas que não podem ser ignoradas. Em um país com índices alarmantes de violência, o monitoramento constante dos agentes de segurança pode gerar um ambiente de vigilância orwelliana, afetando profundamente a saúde mental e a motivação dos policiais.
A sensação de estar sob observação ininterrupta compromete não apenas a autonomia e a confiança no trabalho, mas também cria um cenário de desgaste emocional que, a longo prazo, pode resultar em afastamentos por transtornos psicológicos, como ansiedade e burnout⁶. Além disso, há o risco de exposição de informações sensíveis. Casos recentes, como o ataque do PCC ao sistema do Ministério Público, demonstram como organizações criminosas podem explorar falhas no armazenamento de dados para ameaçar agentes de segurança pública e suas famílias⁷.
O Equilíbrio entre Tecnologia e Direitos Fundamentais
A utilização de câmeras corporais no trabalho policial possui um imenso potencial para aprimorar a segurança pública no Brasil. Essas ferramentas devem ser vistas como aliadas do policial, auxiliando na produção de provas, autenticidade documental por meio de reconhecimento facial e outras aplicações tecnológicas. No entanto, sua aplicação precisa ser orientada pelo bom senso e pela realidade nacional, e não como um instrumento de vigilância extrema, especialmente em um contexto onde não há precedentes internacionais em países de perfil semelhante ao Brasil, com altos índices de violência, complexidade no sistema de justiça criminal e insegurança jurídica na atuação policial..
Nenhum país com desafios semelhantes obrigou suas forças de segurança a serem monitoradas 24 horas por dia, sete dias por semana, por meio de captação ininterrupta de áudio e vídeo. Isso configura um controle desproporcional e uma afronta ao princípio da não autoincriminação, além de comprometer o desempenho e a autonomia dos agentes. Ao invés de promover uma segurança pública eficiente, tal medida tende a criar um ambiente de desconfiança e desgaste emocional entre os policiais.
Violação do Pacto Federativo
Outro ponto fundamental é que a implementação do uso de câmeras corporais deve respeitar o pacto federativo. Não cabe ao Governo Federal impor essa obrigatoriedade de forma centralizada e uniforme, mas sim às Unidades da Federação avaliar suas próprias realidades e desafios de segurança pública. Cada estado tem suas especificidades, e uma política eficaz deve ser adaptada a essas particularidades, considerando fatores como índices de violência, estrutura das forças policiais e recursos tecnológicos disponíveis. Por fim, é essencial que as câmeras corporais sejam adotadas como instrumentos de modernização e eficiência na segurança pública, e não como mecanismos de punição ou vigilância opressiva contra os agentes públicos.
A tecnologia deve ser utilizada para fortalecer a ação policial, proteger os agentes e garantir maior segurança jurídica, sem transformar o trabalho em um palco constante de escrutínio. O Brasil precisa de políticas públicas que equilibrem o uso de tecnologia com a proteção dos direitos fundamentais, promovendo tanto a eficiência policial quanto a dignidade dos agentes. Câmeras corporais, quando bem reguladas, têm o potencial de representar um avanço significativo na segurança pública – mas seu uso deve ser pautado pela prudência e pela observância dos princípios constitucionais que norteiam o Estado Democrático de Direito.
Para encerrar, imagine uma situação em que um auto declarado defensor da transparência e da vigilância que ocupa cargo público de grande importância deseja impor que todos os trabalhadores de um setor sejam monitorados constantemente, sob o argumento de que isso é necessário para garantir segurança e eficiência. A dúvida é: qual seria a disposição desse mesmo indivíduo em ter suas próprias atividades monitoradas em detalhe quando fizer viagens a lugares luxuosos, para participar de eventos com empresários que já estiveram envolvidos em escândalos de corrupção? Será que ele gostaria de ter todas suas ações controladas e divulgadas ou prefere o conforto do anonimato, sem câmeras ou registros de suas palavras e gestos?

A dúvida quanto à adoção obrigatória de câmeras corporais é simples, será que as regras da vigilância e da transparência devem se aplicar apenas aos que arriscam suas vidas nas ruas, combatendo a violência, ou deveriam também alcançar aqueles que trabalham em salas privadas tomando as principais decisões políticas que impactam o país? Se a ideia é garantir integridade, por que ela é tão seletiva? Talvez, ao responder essa questão, encontremos a verdadeira intenção dessas medidas.
Referências
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 598.051/SP, Relator: Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 191.836/SP, Relator: Ministro Alexandre de Moraes, 2021.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), 1969.
BRASIL. Decreto-Lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Artigo 5º, Inciso LVI.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1975.
O TEMPO. "PCC invade sistemas do Ministério Público para atrapalhar investigações". 28 nov. 2024. Disponível em: https://www.otempo.com.br. Acesso em: 29 nov. 2024.